quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Uma doença como cabo eleitoral

O tumor imaginário de Cristina Kirchner comprova que os populistas sul-americanos transformam até câncer em cabo eleitoral


Augusto Nunes (*)


Depois de garantir a reeleição com a beatificação do marido morto, dezenas de modelitos pretos e a cara de choro de quem enviuvou ainda no berço, Cristina Kirchner resolveu aterrissar espetacularmente no clube dos governantes domadores de cânceres, fundado e dirigido por Hugo Chávez. “Exames de rotina, realizados no dia 22, localizaram um carcinoma papilar no lóbulo direito da glândula tireoide, e a presidente será operada no próximo dia 4 de janeiro”, comunicou em 28 de dezembro o porta-voz da Casa Rosada, Alfredo Scoccimarro, tentando dissimular a animação de quem sabe que, na terra do tango, tragédia rende voto.


Nos anos 50, Juan Domingo Perón prolongou a permanência no poder expondo à visitação pública uma Evita em ruínas e, depois, o cadáver da protetora dos descamisados. Cristina foi mais ousada: em vez de explorar a doença dos outros, optou por um câncer pessoal e intransferível. A ideia pareceu funcionar. Em vigília permanente, milhares de devotos atravessaram a semana passada acampados na Plaza de Mayo, sobraçando faixas com a inscrição Fuerza, Cristina, cantando hinos peronistas, rezando e chorando. Para a seita dos loucos por um martírio, foi um reveillon de sonho.


Excitado com o ingresso de Cristina Kirchner no quadro de sócios, que já incluía o cubano Fidel Castro, os brasileiros Lula e Dilma Rousseff e o paraguaio Fernando Lugo, o chefe da entidade informou que a primeira reunião da turma seria realizada assim que a companheira argentina tivesse alta. E aproveitou a oportunidade para assombrar o mundo com a revelação: as enfermidades que andam surpreendendo governantes sul-americanos são coisa dos ianques. Mais precisamente da CIA, que teria descoberto como se faz para instalar tumores malignos em defensores do povo.


O entusiasmo de Chávez contagiou o amigo Lula. Ainda no meio do tratamento, o ex-presidente brasileiro reiterou que, em fevereiro, vai desfilar no Sambódromo a bordo de um carro alegórico da Gaviões da Fiel. Também avisou que, em março, já com a faixa de campeão do Carnaval de São Paulo, homenageará o Rio com uma visita ao Morro do Alemão. Dilma, Lugo e Fidel estavam prontos para entrar na festa desencadeada pela tireoide de Cristina quando se soube que a colega argentina só esqueceu de combinar com os médicos. Ao fim de uma cirurgia de três horas, não foram encontrados sequer vestígios de câncer. A viúva profissional foi operada de um tumor inexistente.


“O exame histopatológico definitivo constatou a presença de nódulos nos dois lóbulos da glândula tireoide, mas descartou células cancerígenas, alterando o diagnóstico inicial”, conformou-se o porta-voz Scoccimarro, esforçando-se para conter a decepção. “O novo diagnóstico levou os médicos a considerarem desnecessário o tratamento de quimioterapia”. Durante quase dez dias, portanto, Cristina Kirchner enfrentou com muita bravura um câncer que nunca existiu. Quem conta com a proteção do Beato Néstor não teme inimigo nenhum. Principalmente os imaginários.


No mundo civilizado, milhares de cientistas perseguem a cura da doença enquanto incontáveis pacientes, famosos ou anônimos, enfrentam tumores malignos com coragem e discrição. No subcontinente acanalhado pelo primitivismo populista, o espetáculo deprimente protagonizado por canastrões de bolero, heróis de chanchada e prima-donas de ópera bufa demonstra que gente obcecada pelo poder transforma até câncer ─ real ou inventado ─ em cabo eleitoral.


(*) Jornalista e Ex-Diretor do Jornal do Brasil, do Jornal Gazeta Mercantil e Revista Forbes. Atualmente na Revista Veja

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