quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

O resgate das escovas milenares

Antonio Prata (*)


"Uma escova de dentes pode levar até mil anos para se decompor", disse o narrador do documentário, e eu senti um aperto no coração. Não por conta do dano ecológico causado pela luta contra o tártaro e a placa bacteriana, mas pela imagem criada em minha cabeça: todas as escovas que já usei, fiéis companheiras por dois ou três meses, abandonadas em distantes aterros sanitários, junto a tomates podres, calotas rachadas e carcaças de geladeira; as cerdas espanadas balançando ao vento ou servindo de morada às larvas na escuridão, "per saecula saeculorum".


As pessoas, quando morrem, morrem; as escovas, não. Ficam por aí. Desde a primeira que eu tive, aquela usada por minha mãe para limpar um único dente, em 1978, até uma Colgate branca e azul, que deixei no lixinho do banheiro em Paraty, no dia 2 de janeiro. Agora, sempre que fecho os olhos, vejo as pobrezinhas, condenadas a um milênio de solidão.


Seria possível resgatá-las? Digamos que eu tivesse muito dinheiro, que eu fosse o Bill Gates e contratasse cientistas da Nasa, criasse ferramentas, pusesse uma legião de trabalhadores a peneirar lixões... Não, impossível, mesmo que encontrasse todas as escovas do país, em meio a sacolas plásticas, pitangas e Ataris, como saber se aquela TEK vermelha, macia, tamanho médio, modelo 1987, é a mesma que eu usei durante a quinta série ou outra qualquer? Só daria para identificá-las se eu tivesse marcado nos cabos, digamos, com uma ponta de faca quente, as minhas iniciais. Mas que tipo de pessoa faria uma coisa dessas?


Taí: Kim Jong-un, o novo ditador norte-coreano, talvez seja capaz de recuperar suas escovas, caso queria. Ou você não acha que os ditadores têm escovas de dentes personalizadas, com seus nomes gravados, belas insígnias em dourado e frases encorajadoras como "Bom dia, ó raio de sol que brilha para o universo!"? Bastaria a ele, portanto, tirar umas 500 mil pessoas do campo e das fábricas e botar para garimpar os aterros do país, até que separassem, das montanhas de escovas proletárias, todas as escovas ditatoriais.


Seria até bom para Kim Jong-un: uma meta, uma missão, totalitarismos precisam disso. O déspota poderia declarar que suas escovas de dentes são objetos sagrados, ou que, através delas, os sequazes do capitalismo conseguiriam obter seu DNA e criar um veneno para matá-lo. "Nem uma escova deixada para trás!", seria o slogan. Ou: "Até a última cerda!".


Durante a busca haveria mortos contaminados por lixo hospitalar e atômico, por leptospirose e vítimas de inanição, claro, mas para estes seriam erguidas estátuas e se cantariam hinos, até o dia em que, décadas mais tarde, Kim Jong-un declarasse a busca terminada, e fizesse o Grande Museu das Escovas de Kim Jong-un, e o povo choraria de felicidade, pois saberia que, se fora capaz de recuperar todas as escovas do majestoso líder, seria capaz de tudo.


Isso, o Kim Jong-un, claro, não eu, pois minhas escovas são iguais às de todos os outros, e ficarão mil anos por aí, em lixões em Sapopemba e Perus, e sobreviverão a mim, a você, aos ditadores coreanos, à própria Coreia e a sabe-se lá mais o quê. Ê, mundo estranho da porra!


(*) Escritor, cronista e colunista da Folha de São Paulo
antonioprata.folha@uol.com.br
@antonioprata

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