Alexandra Prado Coelho (*)
São sete da noite de quarta-feira. O Chiado parece igual a qualquer outro dia.
As esplanadas estão cheias apesar do frio, há turistas a fotografarem-se ao lado da estátua de Fernando Pessoa, há gente a olhar os livros na montra da Bertrand, outros a observar discretamente um homem-estátua. Há dois rapazes a dançar break-dance em frente à estátua do poeta Chiado.
Mas eu vim para ir à igreja. Ou melhor, às igrejas. Passo em frente delas centenas de vezes e raras vezes entro. Nossa Senhora da Encarnação, do lado direito de quem vai descer o Chiado. Em frente dela, ligeiramente mais elevada, Nossa Senhora do Loreto, a igreja dos italianos. E à frente, um pouco mais a baixo, a Basílica dos Mártires.
É quase hora da missa, e em cada uma estão meia dúzia de pessoas sentadas nos bancos, em silêncio. Algumas rezam. A Nossa Senhora do Loreto está um pouco mais vazia, um pouco mais escura, o tecto a precisar de restauro. Mas, tal como nas outras duas, é um mundo de altares, de figuras, de pormenores, e só o fraco ruído de vozes que entra por uma frincha da porta lateral nos recorda que lá fora é o Largo Camões.
A Basílica dos Mártires é a mais grandiosa. Compro um desdobrável que conta a antiquíssima história, desde a sua fundação como pequena ermida, logo em 1147, o ano da conquista de Lisboa aos mouros por D. Afonso Henriques. Relata o texto que a intenção era nela “ser prestado culto à sagrada imagem de Nossa Senhora, trazida pelos Cruzados ingleses, diante da qual o Rei Afonso pediu auxílio e protecção à Mãe de Deus para conseguir aquilo que se propunha: fazer de Lisboa uma cidade cristã”. Foi chamada dos Mártires em memória dos soldados cristãos que morreram em combate.
Apesar de a igreja barroca que existia antes do terramoto ter sido totalmente destruída na tragédia de 1755, ainda vemos, ao lado esquerdo de quem entra, a pia baptismal vinda da primitiva basílica. Numa placa na grade de ferro lê-se que “nesta paróquia se administrou o primeiro baptismo depois da tomada de Lisboa aos mouros”.
Mas o mais surpreendente é a pequena estátua do Mártir Santo Expedito, do lado direito, quase totalmente coberta de ex-votos, pequenas placas metálicas agradecendo as graças concedidas. Muitas são de mães, ou de avós, que agradecem pelos filhos ou netos. Raramente aparece descrita a graça que foi concedida e em muitas apenas uma palavra: “Obrigado.” Procuro as mais antigas. Encontro algumas da década de 50, mas há outras em que as letras já não se decifram, e que podem ser anteriores.
Quem era Santo Expedito? Um militar romano e cristão martirizado no século IV na Arménia, tendo sido decapitado com uma espada. Aparentemente é uma figura misteriosa, da qual se sabe pouco e que alguns questionam se terá mesmo existido (até sobre o nome há diferentes versões). Na Basílica dos Mártires, reparo que a cruz que segura na mão tem gravada a palavra “Hodie” — uma das lendas em torno deste santo é a de que terá sido tentado por um corvo que gritava “Cras! Cras!” [“amanhã!” em latim] numa tentativa de adiar a sua conversão ao cristianismo. Em resposta, Expedito terá dito: “Hodie! [hoje!]”
E, no entanto, apesar de todas as dúvidas e lendas, é objecto de grande devoção em muitos países. Para o povo, ele não só existiu como continua a ajudar todos aqueles que lhe pedem. Expedito é, como o nome indica, o santo das causas urgentes.
Mas a informação mais inesperada que encontro na Internet é que Expedito foi também adaptado como o santo dos hackers e dos nerds. Um texto da revista Wired, que parte de uma reportagem sobre este culto em Nova Orleães, conta que “a Igreja Católica não sabe o que fazer ao Santo Expedito, que é demasiado pagão para ser um verdadeiro santo, e demasiado popular para que as suas estátuas sejam simplesmente atiradas porta fora”.
Segundo o artigo, em 2002, a Igreja propôs que São Isidoro de Sevilha fosse o santo dos programas de computador (terá sido ele a criar uma das primeiras bases de dados do mundo, no século VII, uma enciclopédia que pretendia reunir todo o saber do mundo).
Mas aparentemente os hackers preferem o Santo Expedito. Nos tempos da Internet, um santo que concede as suas graças rapidamente tem grandes vantagens.
Como explica uma das pessoas citadas pela Wired: “Um amigo meu diz que o Santo Expedito tem tudo a ver com fazer passar informação rapidamente.”
Não é isso que queremos?
(*) Jornalista portuguesa do Jornal Público
São sete da noite de quarta-feira. O Chiado parece igual a qualquer outro dia.
As esplanadas estão cheias apesar do frio, há turistas a fotografarem-se ao lado da estátua de Fernando Pessoa, há gente a olhar os livros na montra da Bertrand, outros a observar discretamente um homem-estátua. Há dois rapazes a dançar break-dance em frente à estátua do poeta Chiado.
Mas eu vim para ir à igreja. Ou melhor, às igrejas. Passo em frente delas centenas de vezes e raras vezes entro. Nossa Senhora da Encarnação, do lado direito de quem vai descer o Chiado. Em frente dela, ligeiramente mais elevada, Nossa Senhora do Loreto, a igreja dos italianos. E à frente, um pouco mais a baixo, a Basílica dos Mártires.
É quase hora da missa, e em cada uma estão meia dúzia de pessoas sentadas nos bancos, em silêncio. Algumas rezam. A Nossa Senhora do Loreto está um pouco mais vazia, um pouco mais escura, o tecto a precisar de restauro. Mas, tal como nas outras duas, é um mundo de altares, de figuras, de pormenores, e só o fraco ruído de vozes que entra por uma frincha da porta lateral nos recorda que lá fora é o Largo Camões.
A Basílica dos Mártires é a mais grandiosa. Compro um desdobrável que conta a antiquíssima história, desde a sua fundação como pequena ermida, logo em 1147, o ano da conquista de Lisboa aos mouros por D. Afonso Henriques. Relata o texto que a intenção era nela “ser prestado culto à sagrada imagem de Nossa Senhora, trazida pelos Cruzados ingleses, diante da qual o Rei Afonso pediu auxílio e protecção à Mãe de Deus para conseguir aquilo que se propunha: fazer de Lisboa uma cidade cristã”. Foi chamada dos Mártires em memória dos soldados cristãos que morreram em combate.
Apesar de a igreja barroca que existia antes do terramoto ter sido totalmente destruída na tragédia de 1755, ainda vemos, ao lado esquerdo de quem entra, a pia baptismal vinda da primitiva basílica. Numa placa na grade de ferro lê-se que “nesta paróquia se administrou o primeiro baptismo depois da tomada de Lisboa aos mouros”.
Mas o mais surpreendente é a pequena estátua do Mártir Santo Expedito, do lado direito, quase totalmente coberta de ex-votos, pequenas placas metálicas agradecendo as graças concedidas. Muitas são de mães, ou de avós, que agradecem pelos filhos ou netos. Raramente aparece descrita a graça que foi concedida e em muitas apenas uma palavra: “Obrigado.” Procuro as mais antigas. Encontro algumas da década de 50, mas há outras em que as letras já não se decifram, e que podem ser anteriores.
Quem era Santo Expedito? Um militar romano e cristão martirizado no século IV na Arménia, tendo sido decapitado com uma espada. Aparentemente é uma figura misteriosa, da qual se sabe pouco e que alguns questionam se terá mesmo existido (até sobre o nome há diferentes versões). Na Basílica dos Mártires, reparo que a cruz que segura na mão tem gravada a palavra “Hodie” — uma das lendas em torno deste santo é a de que terá sido tentado por um corvo que gritava “Cras! Cras!” [“amanhã!” em latim] numa tentativa de adiar a sua conversão ao cristianismo. Em resposta, Expedito terá dito: “Hodie! [hoje!]”
E, no entanto, apesar de todas as dúvidas e lendas, é objecto de grande devoção em muitos países. Para o povo, ele não só existiu como continua a ajudar todos aqueles que lhe pedem. Expedito é, como o nome indica, o santo das causas urgentes.
Mas a informação mais inesperada que encontro na Internet é que Expedito foi também adaptado como o santo dos hackers e dos nerds. Um texto da revista Wired, que parte de uma reportagem sobre este culto em Nova Orleães, conta que “a Igreja Católica não sabe o que fazer ao Santo Expedito, que é demasiado pagão para ser um verdadeiro santo, e demasiado popular para que as suas estátuas sejam simplesmente atiradas porta fora”.
Segundo o artigo, em 2002, a Igreja propôs que São Isidoro de Sevilha fosse o santo dos programas de computador (terá sido ele a criar uma das primeiras bases de dados do mundo, no século VII, uma enciclopédia que pretendia reunir todo o saber do mundo).
Mas aparentemente os hackers preferem o Santo Expedito. Nos tempos da Internet, um santo que concede as suas graças rapidamente tem grandes vantagens.
Como explica uma das pessoas citadas pela Wired: “Um amigo meu diz que o Santo Expedito tem tudo a ver com fazer passar informação rapidamente.”
Não é isso que queremos?
(*) Jornalista portuguesa do Jornal Público
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