terça-feira, 14 de abril de 2015

Clamoroso

Flávio Gomes (*) 

Eu ainda não estava na Pan, portanto foi antes de 1994. Possivelmente em 1993, porque o personagem citado era Schumacher e a equipe, a Benetton. 

A Pan costumava mandar pelo menos narrador para as corridas de F-1 no fim dos anos 80 e nos anos 90 — depois, apenas repórter, eu –, com exceção dos GPs da Austrália e do Japão, porque as viagens eram caras demais e a audiência, segundo o dono da emissora, era baixa por causa dos horários. Não sei dizer se por conta deste curioso critério a rádio não mandou ninguém para Suzuka em 1987, 1988, 1990 e 1991, anos dos últimos quatro títulos mundiais conquistados por brasileiros. Se não mandou, não lembro, obviamente se equivocou. 

Vamos assumir, então, que o ano era 1993, e a corrida, no Japão. Apesar de muito modernos para a época em que foram construídos, lá por 1976, os estúdios no alto do edifício Sir Winston Churchill, na Paulista, não eram muito equipados no quesito aparelhos de TV naqueles tempos. Assim, para fazer alguma transmissão “off-tube”, o “tubo” (assim chamada porque narrador, repórter e comentarista transmitiam a partir daquilo que viam no tubo da TV — TV tinha tubo, pesquisem), era preciso montar a linha no aquário da chefia, que ficava no meio da redação e tinha lá umas duas ou três TVs. 

Por alguma razão, o dono da rádio escalou Nilson Cesar e Claudio Carsughi, a dupla da F-1, para transmitir o treino que definiria o grid daquela corrida, na madrugada de sábado — não eram comuns transmissões de treinos. O problema é que na época não existia TV a cabo, ou, se existia, não tinha cabo no aquário da chefia, e as imagens eram muito ruins, com fantasmas, a cor que ia e vinha, um horror. As anteninhas internas não seguravam a onda. Fui convidado para dar uns pitacos, porque naquele ano também não fui a Suzuka e trabalhava na “Folha”, era repórter de F-1, um especialista, sabem como é. Mesmo assim, com aquelas imagens horrorosas, Nilson se virava para narrar a classificação e, lá pelas tantas, acionou o Carsughi. “Claudio, Claudio, mas que volta do Schumacher, o que é que você achou, meu caro Claaaudio Carsughi?”, perguntou. A resposta veio no tom de sempre, com o inconfundível sotaque italiano que ele nunca perdeu, embora vivesse no Brasil desde 1946: “Non achei nada. Estou vendo um carro com oito pneus e dois pilotos, enton é impossível dizer qualquer coisa porque com estas imagens deste aparelho de TV non consigo distinguir quem está pilotando o quê”. 
Claudio Carsughi 


As palavras podem não ter sido essas, exatamente. Mas eu quase caí da cadeira de tanto dar risada, tanto quanto no dia em que o Carsughi, fazendo posto num jogo do Santos na Vila (“posto”, no rádio, é quando o sujeito não participa da transmissão principal, apenas informa o andamento de algum jogo que está sendo realizado em outro lugar) durante um Corinthians x Palmeiras, foi chamado no intervalo pelo José Silvério, que estava com o tempo apertado para girar todo mundo da equipe, espalhada por vários estádios. “Agora vamos à Vila Belmiro, onde Santos e Noroeste empatam em zero a zero. Rapidinho, meu caro Claudio Carsughi, porque estamos em cima da hora, é justo o resultado do primeiro tempo, Claudio?”, perguntou o Silvério, e do outro lado do microfone, na cabine da Pan na Vila Belmiro, Carsughi fez o mais breve e incisivo comentário da história do rádio mundial. “É”, disse. E acabou. 


Nascido em Arezzo em 13 de outubro de 1932, Carsughi trabalhou na Jovem Pan por quase 60 anos. Entrou em 1957, saiu em 1960, voltou em 1963 e lá ficou. Foi demitido hoje depois do programa esportivo da hora do almoço. Especializado em Fórmula 1, foi também um dos grandes nomes da história da “Quatro Rodas”, dono de um texto elegante e tecnicamente perfeito, conhecedor profundo de mecânica e de automóveis. Gostava de futebol, também, e comentava jogos com frequência, sem nunca reclamar de uma escala. Se a rádio iria transmitir São Caetano x Marília às dez da noite e designava Carsughi para trabalhar, ele não emitia um único muxoxo, apresentava-se na hora certa e comentava o jogo com a mesma seriedade e dignidade que dedicaria a uma final de Copa do Mundo. 

Nos anos 70, Claudio foi um pioneiro, no rádio, do uso das estatísticas para explicar o andamento de uma partida, em contraponto com o achismo que permeava os comentários da turma da velha guarda — gente mais nova que ele, inclusive, mas que via futebol de um jeito meio esquisito, pouco científico, meio chutado, transformando qualquer jogo num festival de clichês e lugares-comuns que, definitivamente, não combinavam com o que o velho Mestre pensava. 

Até uns 20 anos atrás, Carsughi andava pela cidade num Karmann-Ghia vermelho. Morava aqui perto (eu ainda tenho escritório no mesmo prédio da Pan, é daqui que escrevo agora, 16 andares abaixo dos estúdios) e muitas vezes vinha a pé para a rádio. Outras, com algum carro bacana, que as montadoras emprestavam para que ele avaliasse. Na última vez em que o encontrei na garagem, estava com um Cinquecento Abarth. “É um carrinho bem interessante”, me disse, sempre vestido impecavelmente, de terno e gravata. Quando vendeu o Karmann-Ghia, guardou o manual e me deu de presente. 

Durante os oito anos em que trabalhei na Pan, tive uma relação muito cordial com Carsughi, sem maiores intimidades porque a certas pessoas devoto uma reverência acima do normal, e com ele era assim. Eu mais ouvia e aprendia do que qualquer outra coisa. Transmitimos juntos algo em torno de 130 GPs, Nilson narrando, ele comentando (ambos em São Paulo), eu reportando nos países onde aconteciam as corridas. 

A Pan sempre foi a cara de seu dono, o “seu” Tuta, que infelizmente adoeceu e, nos últimos tempos, se afastou do dia a dia da emissora. Seu filho, Tutinha, o criador da Jovem Pan 2, que revolucionou o FM no rádio brasileiro nos anos 70, assumiu o AM e tem promovido mudanças radicais na programação e no elenco que, de certa forma, encerraram um ciclo de décadas que fez da emissora um patrimônio da cidade. A trilha do “Jornal da Manhã”, por exemplo, é uma espécie de hino paulistano. Chama-se “Amanhecendo” e faz parte da “Sinfonia Paulistana” de Billy Blanco (1924-2011), composta por 15 canções que louvam “a capital de todos os paulistas” 

“Amanhecendo” tocava todos os dias exatamente às 7h. Um dia me escalaram para apresentar o “Jornal da Manhã” (parece que ainda existe, soube até que aquele rapaz que é comediante e tem um programa no SBT bem tarde da noite faz comentários, putz…). Era um sábado. Eu já tinha alguma bagagem, fazia a “Hora da Verdade” todos os dias no fim da tarde, e não era qualquer coisa que me deixaria nervoso na vida. Mas acordei às 4h para estar na rádio às 6h e não correr risco nenhum de atrasar (cheguei às 4h30…) porque, juro, falar “repita” para o Franco Netto e para o Antonio Freitas quando eles dessem a hora seria algo marcante demais na vida daquele mocinho que cresceu ouvindo os dois dando a hora certa no rádio do carro do meu pai quando eu ia para a escola, quase 20 anos antes. E eram eles, os mesmos que me davam a hora certa no carro do pai a caminho da escola, que só dariam a hora certa naquele sábado se eu dissesse “a hora” e, depois, “repita”. 

Puta que pariu. Eles não viram, o estúdio sempre foi meio escuro e metido a futurista, ficávamos lado a lado na bancada, mas meus olhos se encheram d’água quando falei “repita” pela primeira vez, e mais ainda quando, às 7 em ponto, o operador (Arthur Figueroa, um gênio) soltou a música e, no momento exato, quando o coro diz “vambooooraaaa” num lamento pela última vez, o Franco empostou a voz, a maior voz do rádio e, com solenidade e potência, informou: “Aqui, no espigão da Paulista, sete horas”. E eu, quase gaguejando, a vozinha de taquara rachada embargada, mandei um “repita” inaudível, e o Franco, percebendo minha emoção tola e juvenil, virou para meu lado, piscou o olho e repetiu, “sete horas”, e jamais me esqueci disso, jamais. 

Na nossa vida, neste ofício, entramos e saímos dos lugares, é normal que uma empresa demita alguém, troque pessoas, busque novos caminhos. Não é um problema em si. Mas certas coisas não deveriam acontecer. Uma coisa é mandar embora o Flavio Gomes, foda-se, quem é esse cara na hora do Brasil, ninguém, mas outra, bem diferente, é dispensar o Claudio Carsughi, que existe desde sempre, nascemos, crescemos e morremos ouvindo o Carsughi, certas coisas, desculpe, não deveriam acontecer 

(*) É jornalista, dublê de piloto, escritor e professor de Jornalismo.

2 comentários:

  1. Vergonhoso procedimento da Jovem Pan

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  2. Apenas uma palavra para exprimir tamanha decepção com essa rádio : vergonha

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