Luiza Nagib Eluf (*)
Certa vez, em 1984, eu era Promotora de Justiça Substituta no Fórum Criminal de São Paulo, quando um advogado entrou em minha sala dizendo que tinha um assunto sério a tratar. Era uma sexta-feira do mês de dezembro, o ambiente estava tranqüilo e eu mergulhara nas pilhas de processos, tentando dar cabo do expediente da semana.
Ouvi do advogado que seu cliente estava preso, mas era inocente, como todo acusado na opinião do defensor. Mandei que trouxessem o processo do cartório e verifiquei tratar-se de porte de maconha para uso próprio. Naquele tempo, era crime punido com detenção, mas dificilmente alguém ficaria preso em flagrante por ser apenas usuário de drogas.
Depois de verificar os autos, percebi a razão da prisão: o sujeito tinha uma vasta folha de antecedentes, contendo furtos, roubos e uso de entorpecentes.
No entanto, como frisou o advogado, os crimes apontados haviam ocorrido há nove anos, significando que o réu, aparentemente, tinha mudado de vida.
O defensor insistiu que seu cliente estava preso pelo que havia feito no passado longínquo e pelo qual já havia cumprido pena, não pela infração atual, o que não era justo. Consultando novamente os autos, observei que o réu em questão estava acompanhado de outros dois indivíduos no momento do flagrante e que um deles havia assumido, sozinho, a posse do entorpecente.
O defensor, então, disparou o argumento final, dizendo que o cliente havia se casado e montado uma pequena mercearia. O negócio iria falir se ele continuasse preso e, além disso, sua esposa estava grávida, ansiosa por passar o Natal em companhia do marido. Perguntou se eu receberia a mulher que, mesmo estando de oito meses, fora até o Fórum, na esperança de falar comigo.
Sim, eu estava disposta a ouvir a esposa, como sempre estive disposta a ouvir quem quer que se julgasse injustiçado ou precisando de orientação. A essas alturas, eu já havia decidido concordar com o pedido de liberdade provisória do réu e aproveitei a presença da esposa para fazê-la se comprometer a zelar pelo bom comportamento do marido.
Ela prometeu tudo, é claro, e foi embora esperançosa, enquanto eu redigia minha manifestação nos autos, no sentido de que ele poderia aguardar o julgamento em liberdade. Uma hora depois de eu ter mandado os autos de volta para o cartório, o juiz da Vara entrou na minha sala preocupado, com o processo sob o braço.
Ele queria saber porque eu havia concordado em soltar um sujeito com uma vasta folha de antecedentes criminais. Expliquei que, observando bem, os delitos praticados por ele haviam ocorrido há muito tempo, pois o réu passara nove anos sem ter sido apanhado em conduta criminosa. Além disso, os restos de maconha pelos quais fora preso pesavam uma grama e sua propriedade fora assumida pelo outro indivíduo que o acompanhava.
O juiz se convenceu.
Ponderou que, como eu estava concordando, ele não iria negar o benefício e mandou expedir alvará de soltura.
Naquela tarde, fui para casa preocupada, pensando se havia tomado a decisão certa.
Se aquele sujeito cometesse qualquer infração, por menor que fosse, eu me sentiria responsável perante a sociedade. Por outro lado, manter o acusado preso, nas circunstâncias em que os fatos ocorreram, não se justificava.
O tempo passou e o mês de dezembro terminou.
No final de janeiro, um calor infernal, eu estava suando na minha sala, no mesmo Fórum, quando o advogado daquele réu entrou dizendo “a senhora não sabe o que aconteceu”. Gelei na cadeira.
Em seguida perguntei “ele cometeu outro crime, doutor?”
“Não, não.
Ele passou o Natal com a esposa, ficou muito agradecido à senhora, reabriu a mercearia e o negócio estava andando. O filho nasceu, o casal estava feliz”.
“Mas então, qual é a novidade?” perguntei.
O advogado puxou uma cadeira e sentou-se.
Pausadamente, disse-me: “Ele morreu na semana passada, foi atropelado por um motociclista quando saía de casa. Se tivesse ficado preso, ainda estaria vivo”.
Estou chocada com essa morte, até hoje. Quando concordei com a soltura daquele homem tentei avaliar todas as possibilidades relevantes para a sociedade e a Justiça, mas a morte acidental era imprevisível.
Mesmo assim, fiquei com a estranha sensação de ter sido usada por forças superiores para que o réu cumprisse seu destino. Tomar decisões não é tarefa fácil.
A incumbência de fazer Justiça, por vezes, é verdadeiramente tormentosa.
Nossa eterna preocupação é dar razão a quem a tem.
Os membros do Ministério Público, embora atuem, no mais das vezes, como parte, têm de ser imparciais ao mesmo tempo, buscando a verdade real sobre os fatos.
Daí a importância da independência funcional e do livre convencimento dos aplicadores do direito. Só quem mergulha na causa tem a chance de proferir a melhor decisão e, ainda assim, pode errar.
(*) Advogada e Procuradora de Justiça aposentada. Autora de vários livros, dentre os quais “A paixão no banco dos réus”, da editora Saraiva, sobre crimes passionais.
Certa vez, em 1984, eu era Promotora de Justiça Substituta no Fórum Criminal de São Paulo, quando um advogado entrou em minha sala dizendo que tinha um assunto sério a tratar. Era uma sexta-feira do mês de dezembro, o ambiente estava tranqüilo e eu mergulhara nas pilhas de processos, tentando dar cabo do expediente da semana.
Ouvi do advogado que seu cliente estava preso, mas era inocente, como todo acusado na opinião do defensor. Mandei que trouxessem o processo do cartório e verifiquei tratar-se de porte de maconha para uso próprio. Naquele tempo, era crime punido com detenção, mas dificilmente alguém ficaria preso em flagrante por ser apenas usuário de drogas.
Depois de verificar os autos, percebi a razão da prisão: o sujeito tinha uma vasta folha de antecedentes, contendo furtos, roubos e uso de entorpecentes.
No entanto, como frisou o advogado, os crimes apontados haviam ocorrido há nove anos, significando que o réu, aparentemente, tinha mudado de vida.
O defensor insistiu que seu cliente estava preso pelo que havia feito no passado longínquo e pelo qual já havia cumprido pena, não pela infração atual, o que não era justo. Consultando novamente os autos, observei que o réu em questão estava acompanhado de outros dois indivíduos no momento do flagrante e que um deles havia assumido, sozinho, a posse do entorpecente.
O defensor, então, disparou o argumento final, dizendo que o cliente havia se casado e montado uma pequena mercearia. O negócio iria falir se ele continuasse preso e, além disso, sua esposa estava grávida, ansiosa por passar o Natal em companhia do marido. Perguntou se eu receberia a mulher que, mesmo estando de oito meses, fora até o Fórum, na esperança de falar comigo.
Sim, eu estava disposta a ouvir a esposa, como sempre estive disposta a ouvir quem quer que se julgasse injustiçado ou precisando de orientação. A essas alturas, eu já havia decidido concordar com o pedido de liberdade provisória do réu e aproveitei a presença da esposa para fazê-la se comprometer a zelar pelo bom comportamento do marido.
Ela prometeu tudo, é claro, e foi embora esperançosa, enquanto eu redigia minha manifestação nos autos, no sentido de que ele poderia aguardar o julgamento em liberdade. Uma hora depois de eu ter mandado os autos de volta para o cartório, o juiz da Vara entrou na minha sala preocupado, com o processo sob o braço.
Ele queria saber porque eu havia concordado em soltar um sujeito com uma vasta folha de antecedentes criminais. Expliquei que, observando bem, os delitos praticados por ele haviam ocorrido há muito tempo, pois o réu passara nove anos sem ter sido apanhado em conduta criminosa. Além disso, os restos de maconha pelos quais fora preso pesavam uma grama e sua propriedade fora assumida pelo outro indivíduo que o acompanhava.
O juiz se convenceu.
Ponderou que, como eu estava concordando, ele não iria negar o benefício e mandou expedir alvará de soltura.
Naquela tarde, fui para casa preocupada, pensando se havia tomado a decisão certa.
Se aquele sujeito cometesse qualquer infração, por menor que fosse, eu me sentiria responsável perante a sociedade. Por outro lado, manter o acusado preso, nas circunstâncias em que os fatos ocorreram, não se justificava.
O tempo passou e o mês de dezembro terminou.
No final de janeiro, um calor infernal, eu estava suando na minha sala, no mesmo Fórum, quando o advogado daquele réu entrou dizendo “a senhora não sabe o que aconteceu”. Gelei na cadeira.
Em seguida perguntei “ele cometeu outro crime, doutor?”
“Não, não.
Ele passou o Natal com a esposa, ficou muito agradecido à senhora, reabriu a mercearia e o negócio estava andando. O filho nasceu, o casal estava feliz”.
“Mas então, qual é a novidade?” perguntei.
O advogado puxou uma cadeira e sentou-se.
Pausadamente, disse-me: “Ele morreu na semana passada, foi atropelado por um motociclista quando saía de casa. Se tivesse ficado preso, ainda estaria vivo”.
Estou chocada com essa morte, até hoje. Quando concordei com a soltura daquele homem tentei avaliar todas as possibilidades relevantes para a sociedade e a Justiça, mas a morte acidental era imprevisível.
Mesmo assim, fiquei com a estranha sensação de ter sido usada por forças superiores para que o réu cumprisse seu destino. Tomar decisões não é tarefa fácil.
A incumbência de fazer Justiça, por vezes, é verdadeiramente tormentosa.
Nossa eterna preocupação é dar razão a quem a tem.
Os membros do Ministério Público, embora atuem, no mais das vezes, como parte, têm de ser imparciais ao mesmo tempo, buscando a verdade real sobre os fatos.
Daí a importância da independência funcional e do livre convencimento dos aplicadores do direito. Só quem mergulha na causa tem a chance de proferir a melhor decisão e, ainda assim, pode errar.
(*) Advogada e Procuradora de Justiça aposentada. Autora de vários livros, dentre os quais “A paixão no banco dos réus”, da editora Saraiva, sobre crimes passionais.
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