Fernando Reinach (*)
Para não ficar cantando durante o banho, verifico antes como anda o Cantareira. Na quinta-feira, 15, restavam 8,2% do volume útil. Suspiro e banho rápido.
Nesta sexta-feira, 16, repeti minha rotina. Levei um susto. O Sistema Cantareira estava com 26,7%. Como o volume de água no reservatório poderia ter aumentado 18% em uma noite? Curioso, entrei no Diário do Sistema Cantareira, no site da Sabesp. Informava que havia começado o bombeamento do "volume morto" (quantidade de água que fica no fundo da represa) do Sistema Cantareira. O texto dizia: "Com isso, o nível do Sistema Cantareira será acrescido de 182,5 bilhões de litros de água, o que fará com que o nível suba 18,5% a partir desta sexta-feira".
Se não estivesse acompanhado essa enorme crise ambiental que assola São Paulo, teria tomado um banho longo e despreocupado, afinal o Cantareira estava salvo! Mas não se engane: os 26,7% são uma ilusão retórica.
O que aconteceu foi que, com o começo do funcionamento das bombas, a quantidade de água disponível para ser vendida em São Paulo realmente aumentou. Estamos sugando o fundo da represa, o chamado "volume morto" ou, como prefere a Sabesp, a "reserva técnica". Na lógica do marketing, se esse volume passou a ficar disponível, porque não somá-lo ao nível da represa? Parece simples. Talvez seja purismo, mas, na minha opinião, essa soma é uma forma de desonestidade intelectual que prejudica a compreensão da crise que estamos vivendo.
O discurso honesto seria dizer que o Sistema Cantareira está no limite de sua capacidade e que sua maior represa, responsável por 83% do volume, está com somente 1,7% de sua capacidade útil. Quando a capacidade útil chega a zero, o sistema deixa de ser capaz de fornecer água para São Paulo.
O Sistema Cantareira abastece de água quase 9 milhões de pessoas. Se ele deixar de levar água para São Paulo, boa parte dessas pessoas não terá água em suas casas. Felizmente, parte dessas residências pode ser abastecida por outras represas, mas metade delas não pode ser abastecida de outra maneira e teria de receber água de caminhão-pipa ou ser desocupada.
Dada a seriedade do problema foi decidido instalar uma série de bombas capazes de coletar parte do "volume morto". Esse é o volume de água que garante a recuperação da represa e sua sobrevivência no longo prazo. Essa decisão foi inevitável e vai garantir o abastecimento por alguns meses, talvez até o inicio do próximo período de chuva. Mas é importante dizer que essa decisão envolve riscos. Se gastarmos a maior parte do "volume morto" durante este ano e não chover no final do ano, talvez não exista sequer água para organizar um racionamento em 2015. Além disso, a retirada dessa água vai dificultar, atrasar ou mesmo impedir a recuperação do Sistema Cantareira.
Mas discurso honesto é difícil.
Para entender o problema, é preciso saber que quando uma represa é projetada, é praxe não colocar o túnel que capta a água no ponto mais profundo da represa. Isso garante a existência de um volume que nunca é retirado, o que permite a recuperação do reservatório. É o "volume morto". Além disso, os engenheiros definem um mínimo operacional, abaixo do qual é recomendável reduzir drasticamente a retirada de água de modo que o reservatório possa cumprir sua função por mais tempo. Quando o Sistema Cantareira foi construído, o nível mínimo operacional foi definido em 829 metros (é o número de metros acima do nível do mar em que se encontra a superfície da água) e o "volume morto" começava aos 820,8 metros.
Como eu descrevi no artigo da semana passada, durante a seca de 2004, o reservatório ficou abaixo de 829 metros, e os governos estadual e federal decidiram redefinir o nível do volume mínimo, que passou a ser igual ao início do volume morto (820,8 metros). Naquela época foi usado o mesmo truque retórico. Da noite para o dia, o volume do Sistema Cantareira "cresceu" quase 20%. O equivalente aos 8 metros entre 829 e 820,8.
Foi a primeira vez que o Cantareira "subiu" de nível sem que entrasse uma gota de água. Agora chegamos nos 820 metros, e foi necessário instalar as bombas. E, com elas, o "nível" cresceu novamente. A água diminui, mas a represa sobe.
Como disse Ésquilo: "A primeira vítima de uma guerra é a verdade".
(*) Biólogo , Professor titular , Professor universitário, colunista do Estadão
Para não ficar cantando durante o banho, verifico antes como anda o Cantareira. Na quinta-feira, 15, restavam 8,2% do volume útil. Suspiro e banho rápido.
Nesta sexta-feira, 16, repeti minha rotina. Levei um susto. O Sistema Cantareira estava com 26,7%. Como o volume de água no reservatório poderia ter aumentado 18% em uma noite? Curioso, entrei no Diário do Sistema Cantareira, no site da Sabesp. Informava que havia começado o bombeamento do "volume morto" (quantidade de água que fica no fundo da represa) do Sistema Cantareira. O texto dizia: "Com isso, o nível do Sistema Cantareira será acrescido de 182,5 bilhões de litros de água, o que fará com que o nível suba 18,5% a partir desta sexta-feira".
Se não estivesse acompanhado essa enorme crise ambiental que assola São Paulo, teria tomado um banho longo e despreocupado, afinal o Cantareira estava salvo! Mas não se engane: os 26,7% são uma ilusão retórica.
O que aconteceu foi que, com o começo do funcionamento das bombas, a quantidade de água disponível para ser vendida em São Paulo realmente aumentou. Estamos sugando o fundo da represa, o chamado "volume morto" ou, como prefere a Sabesp, a "reserva técnica". Na lógica do marketing, se esse volume passou a ficar disponível, porque não somá-lo ao nível da represa? Parece simples. Talvez seja purismo, mas, na minha opinião, essa soma é uma forma de desonestidade intelectual que prejudica a compreensão da crise que estamos vivendo.
O discurso honesto seria dizer que o Sistema Cantareira está no limite de sua capacidade e que sua maior represa, responsável por 83% do volume, está com somente 1,7% de sua capacidade útil. Quando a capacidade útil chega a zero, o sistema deixa de ser capaz de fornecer água para São Paulo.
O Sistema Cantareira abastece de água quase 9 milhões de pessoas. Se ele deixar de levar água para São Paulo, boa parte dessas pessoas não terá água em suas casas. Felizmente, parte dessas residências pode ser abastecida por outras represas, mas metade delas não pode ser abastecida de outra maneira e teria de receber água de caminhão-pipa ou ser desocupada.
Dada a seriedade do problema foi decidido instalar uma série de bombas capazes de coletar parte do "volume morto". Esse é o volume de água que garante a recuperação da represa e sua sobrevivência no longo prazo. Essa decisão foi inevitável e vai garantir o abastecimento por alguns meses, talvez até o inicio do próximo período de chuva. Mas é importante dizer que essa decisão envolve riscos. Se gastarmos a maior parte do "volume morto" durante este ano e não chover no final do ano, talvez não exista sequer água para organizar um racionamento em 2015. Além disso, a retirada dessa água vai dificultar, atrasar ou mesmo impedir a recuperação do Sistema Cantareira.
Mas discurso honesto é difícil.
Para entender o problema, é preciso saber que quando uma represa é projetada, é praxe não colocar o túnel que capta a água no ponto mais profundo da represa. Isso garante a existência de um volume que nunca é retirado, o que permite a recuperação do reservatório. É o "volume morto". Além disso, os engenheiros definem um mínimo operacional, abaixo do qual é recomendável reduzir drasticamente a retirada de água de modo que o reservatório possa cumprir sua função por mais tempo. Quando o Sistema Cantareira foi construído, o nível mínimo operacional foi definido em 829 metros (é o número de metros acima do nível do mar em que se encontra a superfície da água) e o "volume morto" começava aos 820,8 metros.
Como eu descrevi no artigo da semana passada, durante a seca de 2004, o reservatório ficou abaixo de 829 metros, e os governos estadual e federal decidiram redefinir o nível do volume mínimo, que passou a ser igual ao início do volume morto (820,8 metros). Naquela época foi usado o mesmo truque retórico. Da noite para o dia, o volume do Sistema Cantareira "cresceu" quase 20%. O equivalente aos 8 metros entre 829 e 820,8.
Foi a primeira vez que o Cantareira "subiu" de nível sem que entrasse uma gota de água. Agora chegamos nos 820 metros, e foi necessário instalar as bombas. E, com elas, o "nível" cresceu novamente. A água diminui, mas a represa sobe.
Como disse Ésquilo: "A primeira vítima de uma guerra é a verdade".
(*) Biólogo , Professor titular , Professor universitário, colunista do Estadão
Nenhum comentário:
Postar um comentário