quarta-feira, 19 de junho de 2013

" A PEC 37 é feita para punir os acertos do Ministério Público"

Revista Veja 


No próximo dia 26, a Câmara dos Deputados colocará em votação, com ou sem acordo, segundo o presidente da Casa, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), a emenda constitucional número 37, que pretende tirar do Ministério Público o poder de conduzir investigações criminais. Se for aprovada, a emenda colocará o Brasil numa infausta lista que reúne Quênia, Uganda e Indonésia, países onde o Ministério Público é amordaçado. 

Para o procurador de Justiça do Rio Grande do Sul Lenio Streck, professor da Scuola Dottorale Tulio Scarelli, em Roma, e da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, a medida é uma tentativa de enterrar investigações sobre políticos. “O Ministério Público é pago para defender interesses públicos que historicamente serviram a uma minoria. Contrariar esses interesses é fazer inimigos”, disse ao site de VEJA. 

V- A tese da exclusividade da polícia nas investigações, conforme prevê a PEC 37, prejudicaria órgãos que se dedicam à apuração de ilícitos penais, incluindo a Receita Federal e o Banco Central. Quantos processos poderiam ser paralisados? 
R- É difícil falar em números. Talvez fosse melhor falar em déficit qualitativo. A história nos mostra que Banco Central, Tribunal de Contas e outros órgãos são fundamentais na apuração dos crimes do “andar de cima” da sociedade. Esse talvez seja o principal problema que a PEC 37 parece querer esconder. Não há nenhum indicativo que o combate aos crimes do colarinho branco e similares venha a ser melhorado pela PEC. Ao contrário: até as pedras sabem que a exclusividade da polícia geraria um enorme prejuízo de qualidade nas investigações. 

V - O MP frequentemente investiga parlamentares e é muito comum que ele apresente denúncias contra deputados e senadores. A aprovação da PEC poderia ser uma retaliação às investigações que incomodam? 
R - O Ministério Público cometeu erros nestes 25 anos. Todos cometem erros. Mas a PEC 37 é feita para punir os acertos do Ministério Público. O Ministério Público é pago para defender interesses públicos que historicamente serviram a uma minoria. Contrariar esses interesses é fazer inimigos, por assim dizer. Quem acusa não agrada aos réus ou potenciais réus. O que me intriga é o Brasil querer ser comparado a Uganda e Indonésia. Se todos buscamos inspiração no direito constitucional alemão, escrevemos centenas de teses imitando os alemães e espanhóis, por que é que na investigação criminal queremos imitar o país de Idi Amin Dada [ex-ditador de Uganda]? 

V -  O STF utilizou extensivamente as investigações que o MP fez do escândalo do mensalão e acabou condenando 25 pessoas. Com a aprovação da PEC, casos de sucesso como esses serão raros? Podem acabar? 
R -  O mensalão é uma pedra no sapato dos defensores da PEC 37. Se não fosse o Ministério Público, processos dessa envergadura não teriam chegado a esse patamar. Historicamente, pode-se dizer que la ley es como la serpiente, solo pica a los descalzos [a lei é como a serpente, só pica os descalços]. Os poderosos sempre se livram dos rigores da lei penal, porque usam “botas”. A PEC 37 apenas alonga o cano das botas dos poderosos. Mexer com a estrutura das instituições é algo que faz que você pague por esse acerto depois. Toda vez que o MP acerta, ele cria um déficit de simpatia. É inexorável que o Ministério Público vá fazer inimigos, porque nosso histórico é de que não vai dar em nada. 

V - O MP tem dado preferência às investigações de algum tipo de crime específico? As pessoas dizem que o Ministério Público escolhe o que investigar. Isso é verdade na medida em que ele tem como missão defender os interesses coletivos. Veja os crimes contra a administração pública: quer algo mais nefasto do que a corrupção? 
R - Proibir o MP de investigar crimes contra a administração pública é acabar com o MP, torná-lo um órgão burocrático. É evidente que, potencialmente, o Ministério Público deve tutelar os interesses coletivos. Não vamos querer o MP priorizando a investigação de crimes de índole individual. 

V - Defensores da PEC 37 alegam que a Constituição não é clara na definição dos poderes de investigação do MP. Existe, no caso da PEC, uma tendência ou cultura de se valer de termos vagos para se tomar decisões de conveniência? 
R -  Os que dizem que a Constituição não permite ao MP investigar estão em contradição, pela simples razão de que, se assim fosse, não haveria a necessidade da PEC 37. No mais, sempre é perigoso aplicar um drible hermenêutico nos dispositivos “incômodos” da Constituição. 

V - As polícias, principalmente as estaduais, penam com falta de recursos. Mas o MP também têm milhares de investigações atrasadas ou paralisadas. Como lidar com o cenário de as duas instituições terem problemas básicos? 
R -  Veja como o problema é estrutural. E por que isso se resolveria com a exclusividade da investigação policial? Seguramente 90% dos crimes de furto, roubo e estelionato só funcionam porque há flagrante. Onde não tem auto de prisão em flagrante não se investiga porque a polícia não tem estrutura. Não somos nenhum modelo de combate à impunidade e à corrupção no mundo. Temos de melhorar. Não podemos piorar. 

V - Nenhum governo quis viabilizar o controle externo da polícia. Por que ninguém se propôs a fazer isso? 
R - O problema no Brasil é histórico. A nossa sociedade é patrimonialista. Historicamente o direito penal tem servido para condenar os pobres. Há uma nítida relação entre a investigação do Ministério Público e o risco que os poderosos sofrem. Não há uma conspiração, mas há um certo arranjo, uma confluência de interesses para que o MP seja retirado da investigação. 

A ‘máfia do asfalto’, desarticulada em abril de 2013 após uma ação anticorrupção do Ministério Público em doze estados brasileiros, era especializada em desvios nos contratos de pavimentação e recapeamento de asfalto em 78 municípios do noroeste de São Paulo. Dezenove pessoas foram denunciadas pelo órgão por formação de quadrilha, falsidade ideológica e fraudes em licitações. A Justiça aceitou a denúncia e decretou a prisão de treze envolvidos. 

As obras públicas recebiam recursos dos Ministérios do Turismo e Cidades, e o esquema de fraudes era centralizado pela empreiteira Demop, que possui mais de trinta empresas parceiras, muitas delas de fachada e todas pertencentes à família Scamatti. Relatórios da operação mostraram que os acusados tinham tentáculos no meio político, sendo citados em escutas telefônicas deputados federais e estaduais de partidos como o PT e o PSDB.

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