domingo, 20 de maio de 2012

Sobre a Comissão da Verdade

 Celso Lafer (*) para O Estado de S.Paulo

 A Comissão Nacional da Verdade, cujos qualificados membros foram empossados na semana passada, insere-se no âmbito do que se denomina justiça de transição, que diz respeito aos modos como, na passagem de regimes autoritários para a democracia, uma sociedade lida com um passado de repressão e violência. Comissões de Verdade são uma instância ad hoc com objetivo básico de apurar, num prazo determinado (dois anos no caso desta), fatos sobre graves violações de direitos humanos. Partem do pressuposto de que podem oferecer mais benefícios para a consolidação da vida democrática de uma sociedade do que a judicialização de processos políticos. 

A Comissão da Verdade não é o marco zero da justiça de transição no Brasil. Tem como antecedentes a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, do governo Fernando Henrique Cardoso, bem-sucedida experiência de reparação aos familiares de mortos e desaparecidos entre 1961 e 1985, e a Comissão de Anistia, que desde o governo Lula propicia medidas indenizatórias de reparação a pessoas atingidas por atos arbitrários cometidos antes da promulgação da Constituição de 1988. 

A Comissão da Verdade deverá examinar e esclarecer graves violações de direitos humanos a fim de efetivar um direito à memória e à verdade histórica. Suas atividades não terão caráter jurisdicional ou punitivo. Ou seja, ela nem pune, pois não é justiça de transição retributiva (em consonância com a Lei da Anistia de 1979, que o STF considerou válida), nem indeniza, até porque da justiça de transição de reparação trataram as duas comissões acima mencionadas. Seu foco recairá sobre as circunstâncias que cercaram a vigência do regime autoritário e deverá cumprir papel de relevo para a afirmação dos valores democráticos, que é a sua razão de ser. 


No que diz respeito à função da justiça, lembro que a comissão poderá receber testemunhos. A amplitude desses testemunhos lhe permitirá fazer uma justiça asseguradora das múltiplas vozes do sofrimento das vítimas e de seus familiares, a quem restituirá institucionalmente dignidade, por obra, para falar com Hannah Arendt, do poder redentor da narrativa e da diferença entre o descrever e o ouvir. 

O papel da comissão não se confunde com o da anistia. Anistia, palavra de origem grega, significa esquecimento e tem proximidade semântica, e não apenas fonética, com amnésia. A anistia coloca-se desde Atenas, depois da vitória da democracia sobre a sangrenta oligarquia dos 30, sob o signo da utilidade política de apaziguamento das tensões de uma sociedade, e não sob o signo da verdade. Não é um perdão. É um esquecimento, juridicamente comandado, de atos cometidos de natureza penal. Esse esquecimento comandado, que alcança atos do governo e dos que a ele resistiram, foi, nesses termos, juridicamente reconhecido como válido pelo STF. Não exclui, no entanto, a afirmação de um direito de titularidade coletiva da cidadania brasileira, a memória da verdade factual de graves violações de direitos humanos. Para assegurar este direito a comissão foi criada. 

A natureza da verdade que cabe à comissão apurar não é a verdade jurídica proveniente da judicialização de processos políticos. É, para recorrer novamente a Arendt, a verdade factual dos fatos e eventos, que é a verdade da política. Esta se caracteriza porque o seu oposto não é o erro, a ilusão ou a opinião, mas sim a falsidade da ocultação ou a mentira na manipulação dos fatos. Por isso seus modos de asserção não são os de evidência da verdade racional, mas o desvendamento dos fatos pelo testemunho e pelo acesso à informação escondida. Seu papel é, assim, e esta é a função principal da comissão, o de impedir o esquecimento por apagamento de rastros da violação de direitos humanos. 

Para tanto ela deverá indicar as maléficas consequências, para a vida política democrática, do criptopoder, tanto no Estado quanto na sociedade, que age na sombra, porque tanto se oculta quanto oculta, isto é, esconde, pelo sigilo, o que fez em matéria de violência e violação de direitos humanos. Realçará, assim, a comissão, a validade do princípio de transparência do poder, que é constitutivo de um regime democrático. 

A verdade factual a ser buscada com objetividade e imparcialidade pela comissão deverá ser uma contribuição para a História. Não é, no entanto, a História. O seu papel é constituir um local de memória da verdade factual da violação dos direitos humanos no Brasil no período que lhe incumbe averiguar, representativo de uma institucionalizada vontade de memória coletiva cidadã dos males dessa violação. Mas a memória não é História, pois escolhe, seleciona e é vivida no presente, com a preocupação do futuro. 

A memória da repressão e o direito à verdade do sofrimento de suas vítimas são tanto uma comprovação de que não se manda impunemente quanto um componente indiscutível do que caracterizou o regime autoritário no Brasil. Este, no entanto, tem outros aspectos e escrever e interpretar sua história requer tomar em conjunto outras facetas do período, na coerência narrativa de uma síntese do heterogêneo. O que estou querendo dizer é que a avaliação histórica do período e de suas circunstâncias é uma indagação que passa por pesquisas e reflexões que não têm a característica da coisa julgada da verdade jurídica num processo penal. Explico-me com dois exemplos: o período do Estado Novo de Getúlio Vargas e a gestão presidencial de Floriano Peixoto foram períodos de significativas violações dos direitos humanos. Têm, no entanto, outras dimensões que a História vem examinando e avaliando de maneira mais ou menos positiva. 

Em síntese, a factualidade para a qual contribuirá a Comissão da Verdade é o limite da liberdade de interpretação. Porém a realidade histórica é esquiva. Por ser humana, é equívoca e inesgotável, como observou Raymond Aron ao tratar dos limites da objetividade histórica. 

(*) Jurista, Professor Universitário e ex-Ministro das Relações Exteriores do Brasil 

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