sexta-feira, 25 de maio de 2012

Anistia aos contas-sujas

Opinião do Estadão

No ecossistema do poder, o político é não só o mais antenado e astuto dos seres. É também o mais ligeiro - quando se trata de promover os próprios interesses, bem entendido. Esta semana, a espécie deu uma demonstração antológica de que não perde para ninguém em matéria de autodefesa. Por 294 votos a 14, a Câmara dos Deputados aprovou na terça-feira um projeto que autoriza o registro das candidaturas dos políticos cujas contas de campanhas anteriores tenham sido rejeitadas pela Justiça Eleitoral.

Passaram-se apenas nove dias úteis entre a apresentação da proposta, de autoria do pepista Roberto Balestra, de Goiás, e a sua aprovação. Dificilmente se encontrará na Casa registro de proeza semelhante. E tem mais: na contramão da praxe legislativa, a votação se deu no mesmo dia da aprovação do pedido de urgência para a tramitação da matéria - que não constava da agenda original da sessão. Todos os partidos, menos um, apoiaram a proposta. A exceção foi o PSOL. Nas outras bancadas, como se vê pelos números, só uns poucos ousaram se opor à lambança.

A decisão a toque de caixa foi uma resposta corporativa ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O colegiado determinou que a reprovação das contas de um candidato "implicará o impedimento de obter a certidão de quitação eleitoral" - exigida para o registro da candidatura. Segundo o tribunal, 21 mil políticos estão nessa situação. A pena é decerto severa, mas não draconiana - ainda mais quando se sabe como são porosas as fronteiras entre a contabilidade eleitoral honesta e as entradas e saídas irrigadas pelo caixa 2 nas duas pontas do percurso.

Além disso, seria um contrassenso cobrar dos candidatos fichas limpas e tolerar as contas sujas. Não menos grave é que, para todos os efeitos, o projeto - a passar ainda pelo Senado - é um salvo-conduto para a esbórnia: se a Justiça Eleitoral rejeita a numeralha apresentada pelos candidatos e nenhuma punição lhes é imposta em consequência, tudo vira um "faz de conta", como diz o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, com assento no TSE. "A Constituição Federal tem o princípio da razoabilidade", raciocina. "Será que é razoável dar a quitação eleitoral mesmo diante da rejeição das contas?"

É fato que em certo número de casos as prestações são rejeitadas por erros formais e não porque resultem de manipulação deliberada. Mas, com o tempo, o risco de exclusão das eleições incentivaria os candidatos honestos a fazer as contas direito e dificultaria a vida daqueles a quem a impunidade acostumou a nadar de braçada em um mar de "recursos não contabilizados". E há que levar em consideração que a resolução do TSE está em perfeita sintonia com o novo clima que aos poucos vai se firmando no País.

Sinal dos tempos, o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, um dos articuladores da iniciativa popular apoiada por 1,3 milhão de eleitores que redundou na Lei da Ficha Limpa, conclamou a sociedade a se manifestar contra a "anistia aos políticos que fraudaram suas prestações de contas". O projeto, afirma a entidade, "atenta contra tudo o que deseja a sociedade brasileira, que se encontra mobilizada em favor dos valores da ética e da moral". Registre-se que, nessa atmosfera, houve na Câmara quem quisesse até reforçar o imperativo da aprovação das contas como precondição para futuras disputas nas urnas.

Ainda em março, o deputado amazonense Pauderney Avelino, do DEM, apresentou projeto com esse fim. No entanto, o presidente da Casa, Marco Maia, do PT gaúcho, preferiu dar prioridade à proposta da complacência, afinal consagrada. De todo modo, há uma questão técnica em jogo: a lei que resultar do golpe de mão dos deputados não se aplicaria às próximas eleições municipais por surgir menos de 12 meses antes da disputa. É também o caso da resolução do TSE.

Por fim, uma ironia: o mesmo Senado que deve consumar a anistia aos contas-sujas acaba de aprovar na Comissão de Constituição e Justiça a exigência de ficha limpa para os futuros detentores de cargos comissionados no serviço público. É o vício homenageando a virtude, como se diz da hipocrisia.

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