Bellini Tavares de Lima Neto (*)
Já que vamos prosear a respeito de música brasileira, vou começar contando uma experiência pessoal que, embora com origem na chamada MPB, acabou virando uma lição de vida que eu procuro aplicar constantemente. Aliás, uma das grandes contribuições da música em nossas vidas é nos apontar caminhos e soluções.
A bossa-nova começou a ser gestada na metade dos anos 50 em diante. Como a arte sempre reflete um momento da sociedade, assim foi com a bossa-nova, um movimento de jovens de classe média alta que tinham acesso à cultura, frequentavam boas escolas, podiam aprender música, tinham, enfim, tempo e suporte sócio-econômico para tudo isso. De um lado, a riqueza musical própria de quem tinha conhecimento técnico para tanto e, de outro, a poesia cheia de lirismo e sofisticação, falando de amor, de sol, de mar. Das boas coisas da vida. Isso tudo refletia uma parte da sociedade brasileira do final dos anos 50 e começo dos anos 60. Mas o Brasil não era apenas isso. A turma da bossa-nova era elitizada.
Foram-se, porém, os anos dourados. Aí vieram os anos 60 que começaram mansos, mas logo se transformaram em profunda agitação. Deu-se o golpe militar de 64. Nasceu a ditadura, gerando uma enorme reviravolta na cultura da sociedade brasileira e provocando forte contestação por parte de alguns setores da vida nacional, como os intelectuais, artistas e estudantes.
Mudança de tempos. Parte da sociedade vivia momentos de contestação e de conseqüente repressão. E o que, então, a arte ou parte dela precisava passar a expressar? A contestação às injustiças da sociedade, às desigualdades, aos desmandos, ao menos pela ótica de uma parcela da sociedade. O sonho louco do que se pensava ser o mais justo e perfeito dos regimes: o socialismo. Isso foi o que se passou a cantar.
Mas isso era uma parcela da sociedade. Havia outros segmentos que não tinham os mesmos anseios e preocupações. Aos poucos, a música brasileira foi se fracionando. A ala dita engajada com os movimentos sociais fazia a chamada música brasileira também engajada que ganhou o curioso título de MPB. Um outro segmento, despreocupado com a tal discussão social, enveredou pelos ritmos estrangeiros, especialmente o “rock and roll” e suas variantes. E, obviamente, continuaram a existir os fieis à música popular tradicional de samba-canção, bolero e similares.
Lá pelos idos dos anos 60 essa era a cena, uma disputa entre os adeptos da MPB e os demais, fosse a turma do “ié-ié-ié” ou os adeptos do samba-canção e dos boleros ou a velha guarda. O time da MPB sentia-se socialmente engajado e comprometido com a luta pela revolução socialista. Os outros eram os alienados.
É claro que isso pouco ou nada trouxe para a luta política ou social, mas gerou um enorme preconceito e uma atitude elitista por parte daqueles que se diziam adeptos da chamada MPB. Um verdadeiro integrante do esquadrão da MPB se recusava a ouvir qualquer coisa que fosse diferente de MPB. Eu fui um desses infelizes por longo tempo.
Eu me achava plenamente integrado no bloco da MPB e logicamente, não ouvia o resto. Aliás, com que direito poderiam existir aquelas tolices da juventude ou aquelas breguices horrorosas? E o que dizer de quem gostasse daquilo tudo? Nada, apenas ignorar com uma dose reforçada de desprezo. Assim andei até que colidi com um livro chamado “EU NÃO SOU CACHORRO NÃO”, escrito por um jornalista e historiador chamado Paulo Cesar de Araújo. Esse jornalista esteve presente na mídia ainda recentemente, por conta de uma polêmica que se criou em torno de seu livro biográfico sobre Roberto Carlos.
E o que houve de tão impactante no livro desse cavalheiro? O simples fato de que ele chama a atenção para uns tantos fatos e verdades que me fizeram refletir e muito. Sua proposta é demonstrar que todas aquelas pessoas qualificadas como brega pelos puristas da MPB (que chamaram a si com exclusividade a condição de mártires da ditadura militar) também foram vítimas de censura, também tiveram suas carreiras perseguidas e até mesmo prejudicadas naquele período.
Na busca de demonstrar sua tese, Paulo Cesar Araujo cita fatos, nomes e situações. No entanto, o que mais me tocou foi o fato de ele chamar a atenção para uma realidade inquestionável: olhando-se para gênios como Chico Buarque de Hollanda, Tom Jobim, Vinicius de Morais, Edú Lobo e mais uma lista enorme de semelhantes e, de outro lado, toda essa gente que ganhou a pecha de brega (Valdick Soriano, Agnaldo Timóteo, Odair José e muitos outros), quem representa efetivamente o povo brasileiro, quem traduz o sentimento da grande maioria das pessoas que compõe este país?
A resposta era óbvia, embora eu nunca tivesse percebido. A cara principal do Brasil é a do universo dos bregas e não a do seleto e reduzido grupo da chamada MPB. E aí me veio a segunda pergunta: e por acaso, o sentimento dessa imensa camada da população, cantado e traduzido pelos ditos bregas, é menos nobre e menos merecedor de respeito que o da pequenina casta de pessoas que se encaixam no universo da MPB?
Deve ser pela importância que a música sempre teve na minha vida, mas o fato é que essas constatações tão simples mexeram muito comigo. Aprendi a avaliar meus juízos de valor sobre pessoas e seus gostos e preferências, antes de sair por aí “deitando falação”. Isso não quer dizer que eu tenha deixado de gostar de tudo o que sempre gostei ou tenho mudado minhas preferências. Sem dúvida, porém, aprendi a respeitar o gosto e preferência dos outros, descobri que, da mesma forma que eu me emociono com as coisas de que gosto, as outras pessoas tem exatamente o mesmo tipo de sentimento em relação ao que gostam. Também comecei a perceber que as críticas desrespeitosas ao que eu prezo e admiro ferem os outros tanto quanto ferem a mim. Afinal, as coisas de que as pessoas gostam, são uma parte delas, tanto quanto as que eu gosto são uma parte de mim. E, de quebra, aboli aquela censura castradora que me acompanhou pela vida afora. Hoje me dou o direito de ouvir de tudo e de gostar exatamente do que eu quiser, sem patrulhamentos ideológicos.
A vida é muito mais simples que se imagina e a música também.
(*) Advogado, músico, compositor, avô e morador em S. Bernardo do Campo (SP)
Já que vamos prosear a respeito de música brasileira, vou começar contando uma experiência pessoal que, embora com origem na chamada MPB, acabou virando uma lição de vida que eu procuro aplicar constantemente. Aliás, uma das grandes contribuições da música em nossas vidas é nos apontar caminhos e soluções.
A bossa-nova começou a ser gestada na metade dos anos 50 em diante. Como a arte sempre reflete um momento da sociedade, assim foi com a bossa-nova, um movimento de jovens de classe média alta que tinham acesso à cultura, frequentavam boas escolas, podiam aprender música, tinham, enfim, tempo e suporte sócio-econômico para tudo isso. De um lado, a riqueza musical própria de quem tinha conhecimento técnico para tanto e, de outro, a poesia cheia de lirismo e sofisticação, falando de amor, de sol, de mar. Das boas coisas da vida. Isso tudo refletia uma parte da sociedade brasileira do final dos anos 50 e começo dos anos 60. Mas o Brasil não era apenas isso. A turma da bossa-nova era elitizada.
Foram-se, porém, os anos dourados. Aí vieram os anos 60 que começaram mansos, mas logo se transformaram em profunda agitação. Deu-se o golpe militar de 64. Nasceu a ditadura, gerando uma enorme reviravolta na cultura da sociedade brasileira e provocando forte contestação por parte de alguns setores da vida nacional, como os intelectuais, artistas e estudantes.
Mudança de tempos. Parte da sociedade vivia momentos de contestação e de conseqüente repressão. E o que, então, a arte ou parte dela precisava passar a expressar? A contestação às injustiças da sociedade, às desigualdades, aos desmandos, ao menos pela ótica de uma parcela da sociedade. O sonho louco do que se pensava ser o mais justo e perfeito dos regimes: o socialismo. Isso foi o que se passou a cantar.
Mas isso era uma parcela da sociedade. Havia outros segmentos que não tinham os mesmos anseios e preocupações. Aos poucos, a música brasileira foi se fracionando. A ala dita engajada com os movimentos sociais fazia a chamada música brasileira também engajada que ganhou o curioso título de MPB. Um outro segmento, despreocupado com a tal discussão social, enveredou pelos ritmos estrangeiros, especialmente o “rock and roll” e suas variantes. E, obviamente, continuaram a existir os fieis à música popular tradicional de samba-canção, bolero e similares.
Lá pelos idos dos anos 60 essa era a cena, uma disputa entre os adeptos da MPB e os demais, fosse a turma do “ié-ié-ié” ou os adeptos do samba-canção e dos boleros ou a velha guarda. O time da MPB sentia-se socialmente engajado e comprometido com a luta pela revolução socialista. Os outros eram os alienados.
É claro que isso pouco ou nada trouxe para a luta política ou social, mas gerou um enorme preconceito e uma atitude elitista por parte daqueles que se diziam adeptos da chamada MPB. Um verdadeiro integrante do esquadrão da MPB se recusava a ouvir qualquer coisa que fosse diferente de MPB. Eu fui um desses infelizes por longo tempo.
Eu me achava plenamente integrado no bloco da MPB e logicamente, não ouvia o resto. Aliás, com que direito poderiam existir aquelas tolices da juventude ou aquelas breguices horrorosas? E o que dizer de quem gostasse daquilo tudo? Nada, apenas ignorar com uma dose reforçada de desprezo. Assim andei até que colidi com um livro chamado “EU NÃO SOU CACHORRO NÃO”, escrito por um jornalista e historiador chamado Paulo Cesar de Araújo. Esse jornalista esteve presente na mídia ainda recentemente, por conta de uma polêmica que se criou em torno de seu livro biográfico sobre Roberto Carlos.
E o que houve de tão impactante no livro desse cavalheiro? O simples fato de que ele chama a atenção para uns tantos fatos e verdades que me fizeram refletir e muito. Sua proposta é demonstrar que todas aquelas pessoas qualificadas como brega pelos puristas da MPB (que chamaram a si com exclusividade a condição de mártires da ditadura militar) também foram vítimas de censura, também tiveram suas carreiras perseguidas e até mesmo prejudicadas naquele período.
Na busca de demonstrar sua tese, Paulo Cesar Araujo cita fatos, nomes e situações. No entanto, o que mais me tocou foi o fato de ele chamar a atenção para uma realidade inquestionável: olhando-se para gênios como Chico Buarque de Hollanda, Tom Jobim, Vinicius de Morais, Edú Lobo e mais uma lista enorme de semelhantes e, de outro lado, toda essa gente que ganhou a pecha de brega (Valdick Soriano, Agnaldo Timóteo, Odair José e muitos outros), quem representa efetivamente o povo brasileiro, quem traduz o sentimento da grande maioria das pessoas que compõe este país?
A resposta era óbvia, embora eu nunca tivesse percebido. A cara principal do Brasil é a do universo dos bregas e não a do seleto e reduzido grupo da chamada MPB. E aí me veio a segunda pergunta: e por acaso, o sentimento dessa imensa camada da população, cantado e traduzido pelos ditos bregas, é menos nobre e menos merecedor de respeito que o da pequenina casta de pessoas que se encaixam no universo da MPB?
Deve ser pela importância que a música sempre teve na minha vida, mas o fato é que essas constatações tão simples mexeram muito comigo. Aprendi a avaliar meus juízos de valor sobre pessoas e seus gostos e preferências, antes de sair por aí “deitando falação”. Isso não quer dizer que eu tenha deixado de gostar de tudo o que sempre gostei ou tenho mudado minhas preferências. Sem dúvida, porém, aprendi a respeitar o gosto e preferência dos outros, descobri que, da mesma forma que eu me emociono com as coisas de que gosto, as outras pessoas tem exatamente o mesmo tipo de sentimento em relação ao que gostam. Também comecei a perceber que as críticas desrespeitosas ao que eu prezo e admiro ferem os outros tanto quanto ferem a mim. Afinal, as coisas de que as pessoas gostam, são uma parte delas, tanto quanto as que eu gosto são uma parte de mim. E, de quebra, aboli aquela censura castradora que me acompanhou pela vida afora. Hoje me dou o direito de ouvir de tudo e de gostar exatamente do que eu quiser, sem patrulhamentos ideológicos.
A vida é muito mais simples que se imagina e a música também.
(*) Advogado, músico, compositor, avô e morador em S. Bernardo do Campo (SP)
Nenhum comentário:
Postar um comentário