Marcelo Semer (*)
A Copa do Mundo é nossa.
Mas o que nós ganhamos com isso?
O pontapé inicial de 2014 foi um chute no lombo do brasileiro: uma festa-sorteio com cara de programa de televisão, que custou a bagatela de trinta milhões de reais, repartidos entre dois bons patrocinadores: o Estado e a Prefeitura do Rio de Janeiro.
Um evento que poderia ter sido realizado nas dependências da própria Fifa, ou de qualquer teatro, fechou por quatro horas o principal aeroporto do Rio para evitar que o trânsito e o barulho das aeronaves atrapalhassem a retirada dos papeizinhos dos potes na Marina da Glória.
Esse é um pequeno exemplo de como o país vai se condicionando a aceitar as regras da Fifa, para a realização do campeonato.
Seguir as regras, no entanto, não parece ser o forte da própria Fifa. Recentemente sua eleição esteve dividida entre dois candidatos acusados de grandes irregularidades. O opositor foi banido e o atual presidente reeleito, não sem indignação daqueles que perderam escolha de sedes, acusando a corrupção de estar campeando por aquelas plagas.
Como alento para Inglaterra e outros derrotados, pelo menos o fato de que não precisarão condicionar suas licitações nem seus aeroportos para os eventos da competição.
Indignados como egípcios com três décadas de Mubarak, milhares de brasileiros tuitaram na semana passada pela saída do todo-poderoso Ricardo Teixeira da presidência da CBF, cargo que ocupa há mais de vinte anos. Seu sogro, João Havelange, dirigiu a Fifa por mais tempo ainda, e Joseph Blatter segue pelo mesmo caminho.
A alternância de poder não é uma prática na política do futebol. Ricardo Teixeira explicou bem isso recentemente em uma entrevista. Disse que seus opositores estavam apenas enchendo o saco e que a CBF era uma organização privada.
Este tem sido melancolicamente o retrato do futebol profissional: imensos lucros privados e despesas públicas tão imensas quanto para garanti-los.
Ou alguém duvida que todo esse discurso de "iniciativa privada" desaparece quando se faz necessário o aval das autoridades nos grandes eventos?
Para o futuro estádio de Itaquera, o aval municipal representa centenas de milhões de reais em "incentivos fiscais", o aval estadual, outros setenta milhões para aumentar a arquibancada, e o aval federal, metade do preço da construção em empréstimos a fundo perdido de nosso banco público de investimentos.
Quando criança, eu sonhava com uma Copa do Mundo no Brasil. Não havia nascido em 1950. Sempre pensei: está aí uma coisa que podemos fazer com o pé nas costas, contando com estádios de grande capacidade em praticamente todas as capitais do país.
Nossos campos tem sido suficientes para que dezenas de milhares de brasileiros acompanhem seus jogos a cada fim de semana ¿ mas, como se viu, absolutamente inaptos para receber os jogos da Fifa. Alguém seguramente está nos enganando...
Mais grave que construir novas obras desnecessárias, com parceiros que a Fifa gosta de "sugerir", ou com regras de licitações mais "ágeis e modernas", é a própria ideia de submissão. Como se um campeonato de futebol, que se afirma privado, pudesse influenciar razões de Estado.
Um juiz de direito no Rio de Janeiro reclamou da pressão "não-republicana" que sofreu para uma decisão que o governo do Estado cobrou, por intermédio do presidente de seu Tribunal de Justiça.
Imagina-se que quanto mais se aproxima o início da Copa, mais as pressões "não-republicanas" se multipliquem. Mas, afinal, que interesses devem ser preservadores prioritariamente na hora de julgar um processo?
Milhares de pessoas podem ser retiradas de suas moradas por estarem no caminho de grandes obras, sem que o Estado se preocupe, primeiro, em alojá-las condignamente.
Alguma grande obra de moradia popular está sendo planejada para diminuir o enorme déficit do país, de modo que possamos nos beneficiar de uma "herança social" da Copa?
A habitabilidade dos mais carentes no Rio de Janeiro não mudou nada com a realização do Pan-2007, muito embora os valores gastos pelos governos tenham triplicado em relação à previsão inicial.
Será esse o saldo da Copa?
Dirigentes festejando magníficos contratos, clubes privados recebendo ajuda para construir suas arenas e os jogos, como sempre, com preços inacessíveis para quem paga os impostos que garantiram tais benefícios.
Ao final, é bem possível que passemos essa Copa acompanhando tudo como mais um programa de televisão.
Com a diferença de que vai ser o mais caro programa de televisão que pagamos na vida.
(*) Juiz de Direito em São Paulo. Foi presidente da Associação Juízes para a Democracia.
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