"Insensato Coração" poderia ter se chamado "Malandros e Manés"
Mauricio Stycer (*)
Na biografia de Janete Clair, “A Usineira de Sonhos”, o jornalista Artur Xexéo conta uma saborosa história destinada a mostrar a sensibilidade da autora de “O Astro” em matéria de gosto popular.
Deu-se em 1978, quando Dias Gomes, seu marido, escrevia a novela “Sinal de Alerta” com a colaboração do poeta Ferreira Gullar. Os dois estavam discutindo o destino de um determinado personagem, uma líder operária casada. Dias imaginava que ela deveria ter um caso com um colega de fábrica. Gullar argumentava que a solução seria incoerente. “Você não pode fazer isso porque não é plausível”, disse o poeta.
Janete Clair ouvia a conversa sem dar palpite, mas não se conteve neste momento: “Não é plausível, mas ia ser lindo”, disse. “O que vocês estão pensando? Mandem o realismo à merda. Ela deve ter o caso e, além de tudo, ficar grávida. O público vai adorar”, completou.
Recordo esta história porque Gilberto Braga, discípulo de Janete Clair, de quem foi assistente no início de sua carreira, sempre deu mostras de pensar como ela na condução de suas novelas. Em “Insensato Coração”, porém, creio que perdeu totalmente a mão.
Ao longo dos sete meses em que foi exibida, a novela não achou o seu foco. Poucos personagens conquistaram o público. A maioria mereceu um tratamento primário, esquemático e, no fundo, preguiçoso dos autores. Espertalhões ou otários, malandros ou manés – assim podemos resumir o caráter de quase todas as figuras que ocuparam a tela no período.
Em alguns momentos, a novela quis retratar a realidade brasileira, e tentou mostrar mazelas como corrupção, impunidade, descalabro político, homofobia, gravidez na adolescência. A trilha escolhida em quase todas as cenas sobre estes temas, “Que País é Este?”, de Renato Russo, fala de um país de 30 anos atrás.
Gilberto Braga fez uma novela que caberia bem na década de 80. Transmitiu uma visão de mundo antiquada, às vezes rancorosa, sem nuances, tanto das relações pessoais e afetivas, quanto das interações entre figuras de diferentes classes sociais.
Com frequência, Braga “mandou o realismo à merda”, como recomendava Janete Clair. Mas a sua trama foi tão mal articulada e costurada, com personagens tão desinteressantes, que as incoerências de “Insensato Coração” não foram entendidas pelo público.
Diante da falta de empatia de seus personagens, os autores aceleraram o ritmo da trama e a transformaram num thriller policial. Foram 25 as mortes ao longo dos 185 capítulos, uma a cada sete dias. A maior parte dos crimes foi cometida por “vilões sem causa”, psicopatas, sem motivos que justificassem seus gestos.
A três dias do fim, houve até um "quem matou?", envolvendo uma das vilãs. É lógico que a audiência subiu. Mas isso não transformou “Insensato Coração” numa novela melhor.
(*) Repórter especial e crítico do UOL
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