segunda-feira, 12 de maio de 2014

Idade mídia e linchamentos

Samuel Lima (*) 

“O que é que uma pessoa é assim por detrás dos buracos dos ouvidos e dos olhos?”. 
A indagação vem lá dos sertões das Gerais, na voz do jagunço Riobaldo, de Guimarães Rosa. Ela me bate na cabeça enquanto releio relatos nos jornais, artigos, portais, blogs e páginas avulsas na internet para tentar entender que tipo de sentimento (ou ausência completa de humanidade) movia a multidão de justiceiros e linchadores do bairro pobre de Morrinhos, no Guarujá (SP), que chacinou, na tarde de sábado, 3 de maio, a pauladas, socos e pontapés, a dona de casa Fabiane de Jesus, 33 anos, casada, mãe de duas filhas. Ela foi confundida com uma suposta sequestradora de crianças, cujo retrato falado fora divulgado dias antes pela página “Guarujá Alerta”, no Facebook. 

A jornalista Paula Saldaña voltou ao Guarujá (SP), dias após a chacina da dona de casa. Percorreu as ruas, dialogou com o silêncio e a perplexidade reinante, observou os avisos do crime organizado nos muros indicando “a lei do silêncio” sobre o crime. E relatou: 
“O clima entre a maioria dos moradores é um misto de medo, revolta e, para alguns, vergonha. Fabiane foi vítima de uma multidão que a agrediu, filmou e tirou fotos. (..) Poucos moradores que presenciaram ou participaram do espancamento se dispõem a falar abertamente sobre o assunto. Há medo de represálias de criminosos. A polícia também procura responsáveis, o que colabora com o silêncio. “É hipócrita quem diz que não viu nada. No enterro dela, havia muita gente que antes estava batendo e gritando 'mata, mata!', diz uma comerciante, que pediu anonimato (Estado de S. Paulo, Metrópole, ed. 11/05/14, p. A25: http://migre.me/j975w)".

Visitei e naveguei a página “Guarujá Alerta – Sempre alerta aos fatos e notícias”, no Facebook, que desde o dia 5 de maio deixou de ser atualizada. Seu dono alega estar “sendo ameaçado” e se diz inocente. Contudo, publicou o retrato falado usado para identificar Fabiane e levar seus algozes à chacina. Na última postagem, o autor que se esconde no anonimato, escreve: “Por ora, estamos colaborando com as investigações. Sendo assim, não nos manifestaremos sobre esse assunto para não atrapalharmos o trabalho da polícia”. Ao “post”, seguem mais de 10.600 comentários, num debate intenso. 
Não consegui ler todos, claro, mas até onde vi a página, que faz uma imitação de péssima qualidade de jornalismo, é duramente condenada pelos comentaristas. 
Um deles, Gabriel Weffort, resume profético: "Comunicação é uma arma poderosa e nas mãos erradas dá nisso...". Outro comentarista, Mario Silva, foi ainda mais contundente: “Vocês não são apenas irresponsáveis, vocês são, a partir de agora, assassinos”. 

O sociólogo José de Souza Martins, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP, busca responder que tipo de sentimento movia a multidão de justiceiros e linchadores. “Nesse rito, morremos todos, aos poucos, violentamente, porque nele a sociedade se acaba para ser um aglomerado provisório de seres sem rumo” (Leia a íntegra do artigo, publicado no Caderno Aliás, do Estado de S. Paulo, ed. 11/05/2014, p. E2: http://migre.me/j9634). 

Estudioso e pesquisador do assunto, Martins resgata dados importantes para que possamos refletir, em retrospectiva histórica, antes de nos atermos mais ao papel da internet e das chamadas “redes sociais” (ou antissociais?) nesse tipo de acontecimento dantesco e trágico. Escreve o sociólogo: “Num recorte de 2 mil casos de linchamentos no Brasil, 7,8% foram de inocentes. É uma proporção muita alta. Nos últimos 60 anos, ao menos um milhão de pessoas participaram de linchamentos ou tentativas de linchamento neste País. 
O que faz desta sociedade uma sociedade altamente perigosa porque longa e demoradamente motivada a agir fora da lei no que à vida se refere (fonte cit.)”. 


O pesquisador da USP completa sua análise com dados mais inquietantes, analisados a partir das megamanifestações de junho do ano passado: “Os indícios de linchamentos e tentativas vêm crescendo: de quatro por semana antes das manifestações de rua de junho de 2013 fomos para um por dia depois das manifestações. E nos últimos dias tendem a se aproximar de dois casos diários. Pode ser conjuntural, mas é indicação de que a sociedade está descontrolada. Expressão de falta de confiança nas instituições, medo e insegurança (cit., grifo meu)”. 

Penso, no entanto, que esse tipo de crime não encontra guarida simplesmente na sensação de insegurança ou na suposta “falta de confiança nas instituições”, como defende Martins. Há uma dosagem letal de incivilidade e de apologia à violência que alimenta esse monstro – a brutalidade que os filósofos chamam de “homem lobo do homem”. E essa brutalidade vem sendo gestada no ventre público das mídias – tradicionais e digitais – assumindo um papel absolutamente letal quando se combinam a apologia do crime em horário nobre, em rede aberta de televisão com as mais de cinco mil páginas no Facebook que pregam, abertamente, a “Pena de Talião”, como o fez recentemente a jornalista e apresentadora do SBT, Rachel Sheherazade, no começo de fevereiro. 

O pesquisador Fábio Milani, coordenador do Laboratório de Estudos da Imagem e Cibercultura da Universidade Federal do Espírito Santo, identifica hoje um público de cerca de 20 milhões de pessoas, seguindo 5 mil páginas nacionais, que se dedicam a fazer a apologia à violência, seguindo a mesma linha dos programas policialescos da TV aberta. /;/;/;/ Milani fez o mapa da “rede do ódio” no Facebook.
Em entrevista publicada na revista Carta Capital (http://migre.me/j96Pa) Milani registra que sua “pesquisa vasculha território obscuro da internet: as comunidades que clamam por violência policial, linchamentos, mortes dos ‘esquerdistas’, e novo golpe militar”. Questionado sobre a responsabilidade dessas páginas nos linchamentos e tentativas de justiçamento ocorridas no país, ele não alivia: “As páginas são mais influentes do que parecem. É uma saída do armário de milhões de pessoas que seguem essas páginas e nutrem uma relação com esse discurso de que bandido bom é bandido morto” (Fonte: Folha de S. Paulo cit.). 

Ressaltam os jornalistas Artur Rodrigues e Emilio Sant’Anna, da Folha de S. Paulo (Cotidiano, ed. 11/05/14, p. C4): “Exemplo disso é a ‘Plantão Policial’, páginas de Caldas Novas (GO), com 471 mil seguidores. Seu criador, o PM Alison Maia, 40, assessor de imprensa da polícia na cidade, tornou-se uma celebridade local devido à página. 
Assim como os programas televisivos, seus vídeos têm boa qualidade e até vinheta. 
A diferença é a violência, bem maior” (Leia a íntegra aqui: http://migre.me/j96I1). 

Esse tipo de liame, em última análise, influenciou os moradores e vizinhos de Fabiane de Jesus (entre os quais mulheres e crianças) que, na fronteira entre mentira, irresponsabilidade e ficção, com uma dosagem altíssima de desumanidade e estupidez, foram transformados em assassinos. 

Já escrevi aqui no blog recentemente (“Redes sociais, ódio de classe e irrealidade”: http://migre.me/j97WD) sobre esse papel catalisador das redes sociais em atos de violência e intolerância, de modo geral. Na era da sociedade do conhecimento, da propalada “transparência total” parece que mergulhamos naquilo que Denis de Moraes chamou de “idade mídia”. Ou seja, uma sociedade à mercê de comportamentos irracionais, de turba ou manada, cuja atitude pode ser guiada por um palpite infeliz de uma “Sheherazade” ou “Datenas” da vida, na mídia tradicional, ou através das páginas de “rede do ódio”, mineradas e identificadas na oportuna pesquisa de Fábio Milani (UFES). 

Que o relato do porteiro Jaílson Alves das Neves, 40 anos, marido de Fabiane Maria de Jesus, igualmente de 33 anos, nos arrebate e renove nossa capacidade de prosseguir, um dia de cada vez, lutando por uma sociedade democrática, socialmente justa e fraterna. 
Ao repórter Tiago Dantas (O Globo), Neves contou: “Não pude me despedir da minha mulher. Minhas filhas não vão poder passar o Dia das Mães com a mãe delas. Mas eu espero que a morte da Fabiane não seja em vão. Espero que as pessoas percebam que fazer justiça com as próprias mãos é uma coisa errada. Não vou deixar a morte dela cair no esquecimento. Isso não pode acontecer com mais ninguém” (Aqui a íntegra da reportagem: http://migre.me/j98cZ). 

Há quem diga que estamos mergulhando, munidos de mobiles e altíssima tecnologia, numa nova Idade Média, época cuja falta de transparência e luz do conhecimento cegava. Mas, na Idade “Mídia” é o excesso de luz que produz cegueira coletiva – e, no limite, legitima o assassinato de inocentes. Do fundo d’alma, chega outra voz das Minas Gerais, agora a do poeta Carlos Drummond de Andrade: “Calo-me, espero, decifro./ As coisas talvez melhorem./ São tão fortes as coisas!/ Mas eu não sou as coisas e me revolto”. 

(*) Jornalista, Professor-Adjunto da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FAC/UnB) e pesquisador do Núcleo de Transformações sobre o Mundo do Trabalho (TMT) do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política (UFSC)

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