sábado, 17 de maio de 2014

A Copa e a crise brasileira

Maurício Costa de Carvalho (*) 

As grandes manifestações que tomaram as ruas do Brasil em junho de 2013 subverteram o lugar reservado na história para o ano de 2014 no país. 

Em 2007 quando o Brasil foi oficialmente confirmado como país-sede da Copa do Mundo de Futebol da FIFA (Federação Internacional de Futebol Associado), as promessas de que o megaevento deixaria um grande legado de desenvolvimento urbano e social com pesados investimentos privados e sem desembolso de verbas públicas parecia apontar para a coroação do discurso que previa uma década de vigoroso crescimento econômico de um país protegido da imensa crise que naquele ano já começava a assombrar Estados Unidos e Europa. 

Hoje, a menos de 40 dias do início dos jogos, o cenário do “país do futebol” é de profunda instabilidade social e política com reflexo em uma enorme e em certa medida inesperada crítica negativa à realização da Copa do Mundo. 

À rejeição popular aos gastos estratosféricos com obras atrasadas, superfaturadas e ineficazes, à ausência quase absoluta do legado social prometido, às mortes de operários nos estádios e à ingerência completa da FIFA na política nacional, soma-se a realidade de cidades conflagradas, alta no custo de vida e serviços públicos sucateados. 

Desde junho de 2013 eclodem diariamente manifestações populares das mais diversas, de ocupações de imóveis urbanos, a atos de contra a Copa e inúmeras greves. 
As Jornadas de junho não só demoliram a aura de estabilidade social, política e econômica dos edifícios teóricos forjados pelos governos Lula e Dilma para sustentar o chamado neo desenvolvimentismo brasileiro. 

Elas também explicitaram o esgotamento de um projeto que, longe de romper com as estruturas do modelo neoliberal que cresceu no país na década anterior, reforçou seus principais pilares, propagando a falsa ideia de que seria possível blindar o Brasil contra a crise econômica internacional a partir de um pacto conservador de classes amparado por um lado na tentativa de apaziguar os conflitos sociais e combater a pobreza extrema a partir de políticas compensatórias e incentivo ao consumo e ao crédito e, por outro lado, no fortalecimento da ortodoxia econômica que permitiu a lucros recordes para bancos, agronegócio e setor imobiliário nacionais. 

A realização da Copa do Mundo tem exposto as fraturas mais profundas do “modelo brasileiro” e evidenciado uma crise já instalada que tende a avançar. 
As obras da Copa, inscritas como parte do segundo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) – eixo dos últimos dois governos brasileiros – revelam que o estímulo fetichista ao crescimento econômico a todo custo ao invés de ser o oposto da crise econômica é parte fundamental de seu desenvolvimento por outros meios, aprofundando um processo de acumulação baseado principalmente no aumento a espoliação urbana. 

Combinada a isso, ainda que não estejamos na mesma situação econômica de países onde a crise provocou austeros ajustes contra sua população, a dinâmica da economia não só não está imune como já apresenta elementos da estagnação e os megaeventos têm sido importantes vetores de “importação” desse estado crítico dos países centrais. 


A dinâmica da crise condiciona a realização da Copa 
A FIFA é uma empresa privada que sustenta seus negócios a partir da parceria com um seleto grupo de grandes corporações internacionais, a saber: Coca-Cola, Adidas, Emirates Airlines, Sony, Hyundai-Kia Motors e Visa. 
Essa parceria – que no caso de Coca-Cola e a Adidas já existe há cerca de 50 anos – conseguiu elevar a Copa do Mundo de Futebol ao status de maior megaevento do planeta e, a partir da estandardização do “padrão FIFA”, garanti-lo como potente instrumento de valorização dos seus negócios e de outros setores associados, mobilizando transações bilionárias e interesses dos mais diversos agentes, envolvendo governos e estruturas estatais. 

Assim como não é possível desprezar o peso da Copa do Mundo e da FIFA na economia e na política mundiais (a FIFA tem mais associados que a ONU, por exemplo), suas ações também revelam bases concretas com as quais são traçadas estratégias corporativas dentro dos marcos estabelecidos pela escala global do desenvolvimento das forças produtivas mundiais. 

Nesse sentido, como salta aos olhos, a realização das últimas Copas tem sido balizada pelo estado crítico da economia mundial, sendo influenciada e influenciando em seu desenvolvimento. 

Simplificadamente podemos creditar a eclosão da atual crise a um problema crônico que vem se estabelecendo na economia mundial desde a década de 1970 quando se iniciou uma revolução tecnológica desencadeadora de um processo produtivo que levou o capitalismo à condição crítica de super acumulação de capital que hoje vivenciamos, definida como excesso de capital em relação às possibilidades de emprega-lo lucrativamente ao mesmo tempo em que se produz excesso de trabalho, manifesto pelo desemprego ou subemprego amplo. 

Não podendo empregar-se diretamente na produção sob pena de uma nova crise de superprodução, esse capital excedente – como mercadoria, moeda ou capacidade produtiva excedentes – busca evitar a crise de desvalorização certa a partir de expansões geográficas à procura de abrir novos mercados com deslocamento para investimentos que em tese valorizariam em longo prazo, tais como infraestruturas físicas e sociais de transportes, comunicação, educação, pesquisa, etc. 

​Os megaeventos esportivos, os acordos de livre comércio ou mesmo os programas como o PAC que estimulam transformações urbanas e grandes obras públicas representam variações desses acordos que permitem um rearranjo espacial que facilite a realocação de capital com a intenção de valorização futura. 

Para que esse processo de investimento em infraestruturas se dê de maneira lucrativa é indispensável que esse corpo de fixidez incorporado ao espaço seja utilizado no próprio local de implantação. 

Uma nova torre de controle de um aeroporto não pode ser demolida antes que tenha garantido o retorno lucrativo a quem investiu nela, por exemplo. 
O mesmo vale para a destruição e reconstrução e “modernização” de portos, estradas, ferrovias, hidrovias. 

A “destruição criativa” das cidades com novos empreendimentos imobiliários é também fator preponderante nesse contexto e passou a ser o principal filão da realização dos megaeventos. 
Porém, essas transformações não acontecem sem entraves. 
A alteração permanente do território mediante incorporação de novos fixos recorrentemente ameaça os valores já fixados, mas que ainda não foram realizados plenamente. 

Essa dinâmica, impossível de ser controlada na escala dos territórios nacionais, acaba por alcançar todo o planeta, alastrando-se a partir dos centros monopolistas em direção a territórios onde a realização lucrativa do capital excedente seja possível. 

Na atual crise, os países centrais, assolados pelo desemprego e pela retração produtiva, são incapazes de absorver esse capital excedente, que se desloca buscando centros mais dinâmicos de acumulação. 

Não por acaso desde que a crise estourou nos EUA em 2007 os países escolhidos pela FIFA para serem sedes da Copa foram os emergentes Brasil, Rússia e Catar. 

A África do Sul, escolhida antes de 2007 tampouco está de fora desse time de economias que em tese podem absorver rentavelmente esse capital ávido por valorização. 

A grande questão é que esse capital excedente não se desloca comprando o risco de não se valorizar. 
Os territórios que o absorvem têm de arrumar meios de dar garantias de pagamento, isto é, garantir que se complete efetivamente o processo de valorização por meio de suas reservas ou mesmo de mercadorias. 

No caso de não existirem essas reservas, esses territórios devem dar um jeito de encontrá-las ou mesmo receber crédito ou ajuda, tornando-se vulneráveis a fluxos de capitais especulativos e fictícios. 

Desenvolve-se, então, uma cadeia complexa de relações internacionais calcadas em um processo de exportação de crise que se manifesta por meio do capital e do trabalho excedentes. 

A complexidade desse processo encadeia uma série de novos centros de dinamismo da acumulação de capital associados à busca de competitividade no cenário internacional que podem levar, por um lado, à emergência de novos atores protagonistas da geopolítica mundial – como acontece com a China, por exemplo – ou, por outro lado, à eclosão de conflitos internos e externos aos Estados ou fortes crises de desvalorização com consequências devastadoras para os territórios que não conseguirem obter sucesso em longo prazo. 

O Brasil da Copa, a crise que já existe e a que pode vir 
Pensando no conjunto dessa análise não podemos deixar de encontrar similaridades com o desenvolvimento da formação social brasileira. 

Credenciado pelo forte padrão exportador de produtos primários, pelos índices de consumo interno baseados em largo estímulo ao crédito e pela ortodoxia da política econômica o país tornou-se importante referência para investimentos na economia mundial em crise e atraente para que se efetivasse o pleito de sede para a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. 

Ao mesmo tempo, grandes projetos de reestruturação do território referentes às obras urbanas e de infraestrutura – como a transposição do Rio São Francisco, as usinas hidrelétricas Girau, Santo Antônio e Belo Monte e o Programa Minha Casa, Minha Vida – feitos em geral com parcerias público-privadas ou mesmo privatizações e concessões foram colocados em curso com os PACs. 

Se tal cenário permitiu por um lado a ascensão de um discurso apologético do neo desenvolvimentismo brasileiro legitimado internacionalmente, por outro também se baseou na completa incapacidade de oferecer alternativas de transformação mais profundas, resumindo a ascensão social dos mais pobres à ampliação do consumo e de alguns programas sociais parciais e deixando de lado qualquer mudança mais estrutural no trágico quadro dos serviços públicos. 

Dessa forma, o aumento real do salário proporcionado por uma mão era retirado por outra, especialmente a partir da precária condição de vida nas grandes metrópoles nacionais que viram o boom imobiliário multiplicar o preço dos aluguéis, aumentar a segregação urbana por meio da expulsão dos pobres para as periferias e gerar maior pressão nos já precários serviços de transportes, saneamento básico, segurança, saúde e educação. 

Não foi coincidência que as Jornadas de junho tivessem começado a partir das condições desumanas dos transportes nas grandes cidades e que os protestos tivessem conquistado ainda mais força ao se iniciar a Copa das Confederações da FIFA. 

Foi um levante juvenil e popular contra a acumulação por espoliação tal qual o que havia tomado conta da praça Taksim na Turquia, eventos que tiveram bastante importância porque colocaram os países ditos emergentes na rota dos protestos contra a crise. 

Da mesma forma que o crescimento brasileiro representou a outra face da crise capitalista mundial, as manifestações que tiveram início em junho de 2013 representam a outra face da Primavera Árabe, do Occupy Wall Street, dos Indignados espanhóis, das greves gerais da Grécia e de tantas outras buscas de caminhos para que o povo não pague a conta da crise capitalista. 

A Copa do Mundo intensifica a espoliação com dezenas de milhares de famílias removidas de suas casas, gastos públicos astronômicos e incentivo a obras atrasadas e que aprofundam a segregação urbana nas cidades-sede e indícios de pesados superfaturamentos e corrupção. 

Esse quadro se agrava pelo aparato jurídico de exceção imposto pela FIFA que envolve a criação de normas que garantem imunidade jurídica e ingerência da entidade no território, apropriação privada de espaços públicos por meio de zonas de exclusão, regime de contratação que facilita o superfaturamento, tribunais de exceção e mais recentemente estão em discussão leis antiprotestos combinadas à aquisição de enorme aparato de segurança mobilizado para os jogos. 

Na contramão das promessas, é possível que o legado da Copa seja fundamentalmente essa combinação da espoliação e da exceção nas cidades. Mas não “só” isso. 

Como parte dos mecanismos de exceção está também a possibilidade de ampliação do endividamento dos municípios, o que já tem ocorrido nos últimos dois anos quando o aumento médio da dívida pública das cidades-sede é superior ao dobro daquele das capitais sem Copa. 

Somados aos outros gastos com estruturas temporárias e permanentes e pensando em um cenário de queda no crescimento econômico, retração industrial e diminuição da confiança do mercado financeiro com queda no grau de investimento do país, há uma tendência evidente à importação da crise dos países centrais para o Brasil. 

Cabe especialmente às ruas encontrar novamente uma alternativa a esse caminho. 

(*) Geógrafo e pós-graduando em Geografia Humana na Universidade de São Paulo onde estuda os impactos da Copa na regulação do território brasileiro e as normas de exceção

Nenhum comentário:

Postar um comentário