sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

No conto das frutas

E ele prova, à sua maneira,que um ataque de besteira, faz de um doutor um otário 

Bellini Tavares de Lima Neto (*)

Em 1974 o compositor paraense Billy Blanco brindava São Paulo e a música popular brasileira com uma das mais extraordinárias e maravilhosas homenagens: “Sinfonia Paulistana”, uma série de canções que retrataram a cidade de São Paulo com uma fidelidade que nenhum paulista jamais conseguiu. 

Qual é o morador mais antigo de São Paulo que nunca acordou ao som de “Vam’bora, vam’borá, tá na hora, vam’bora, vam’bora”? Virou um marco da capital paulista, uma espécie de hino de todas as horas. 

Tudo o que Billy, magistral compositor, descreveu sobre São Paulo é absolutamente verdadeiro. Quem conhece a “Paulistana” pode comprovar e quem não conhece deveria conhecer. Não é conceitual e filosoficamente possível nascer ou viver em São Paulo sem se colocar ao som da “Paulistana” pelo menos uma vez na vida. A equação não fecha.

O verso acima é o retrato de um personagem que o tempo andou apagando do cenário, mas que, lá pelos idos dos anos 70 e antes, era figura obrigatória nas ruas da Paulicéia. 
É o camelô. 

O camelô é uma instituição humana que mereceria estudos antropológicos ou psicológicos de muita profundidade e respeito. Eram donos de uma palavra rápida e envolvente que acabava massificando a mente da vítima a ponto de ela comprar as tolices mais disparatadas. 
Certa vez eu comprei de um deles um objeto que prometia realizar toda a carga de sonhos eróticos de que os meus 15 anos eram capazes. Tratava-se de um objeto feito em papelão e nele havia um pequeno orifício. Olhando-se pelo orifício, oh deuses de todos os Olimpos! era possível ver as moças na rua sem roupa. Comprei meio ressabiado, imaginando o que os demais estariam pensando do molecote tarado, magro e cheio de espinhas na cara que, inquestionavelmente, permitia aos observadores imaginarem qual era sua ocupação principal. De posse da pequena maravilha, me escondi num canto de um prédio para testar a minha maravilhosa chave do prazer. E descobri, um tanto decepcionado e me sentindo o maior dos imbecis, que aquilo não era mais que dois pequenos pedaços de papelão colados um ao outro e, no tal orifício, uma pena de galinha que simplesmente fornecia uma visão falsa de contorno das pessoas. 

O tempo passou, o camelô se tornou mais raro, hoje as pessoas caem em contos diferentes, coisas da internet e outras mutretas cibernéticas. Mas, o ataque de besteira que faz de um doutor, um otário, esse é intrínseco ao ser humano provavelmente desde sua criação, seja pela teoria do evolucionismo, seja pelo da criação divina. 
Cada vez me convenço mais que, bastou o bicho homem aprender a se sustentar nas pernas traseiras para que logo aparecesse um camelô e um otário. 
O dia de todo mundo chega, é só uma questão de tempo. 

Entramos hoje, a parceira e eu, numa banca de frutas que existe aqui em Maresias. 
As frutas são de ótima qualidade e o vendedor é um talento da ação e da comunicação. Mal se entra na banca e lá vem ele, incisivo e convincente, oferecendo as melhores frutas que se pode provar. Laranjas especiais, mexericas colhidas nos jardins do Éden, uvas, mamões, peras cruzadas com alguma outra coisa, tudo ali tem um sabor misterioso, lembra esses filmes de ficção científica onde se criam animais e plantas inimagináveis no nosso limitado universo. 

Nós já havíamos comprado frutas do homem e, apesar do preço um pouco acima da média de mercado, a qualidade compensava qualquer excesso na composição econômica dos valores. Entramos, então, com o intuito de comprar uma coisinha ou outra e lá veio um batalhão de camelôs. Hoje havia o dono, seu sócio, os filhos, todos donos de uma extroversão no mínimo alarmante. Prova daqui, prova dali, já nos pusemos a pensar no filme da noite regado àquelas maravilhas da natureza horti-fruti-granjeira. 
A conversa prosseguiu e o volume da mercadoria também. 

Depois de um festival de degustação as caixas foram todas colocadas no porta-malas do automóvel. E então apareceu a conta. O valor era astronômico, inteiramente fora de qualquer padrão. E, nesse exato momento, a máxima legada por Billy Blanco se manifestou e um ataque de besteira fez de dois doutores, dois otários. Olhamos, um para o outro, um tanto impressionados com o valor, mas, simplesmente pagamos. 

Voltamos para casa em silêncio e só quando chegamos e começamos a descarregar tudo aquilo é que recobramos a fala. O preço era completamente fora de parâmetros. Guardamos tudo aquilo, frutas, sem dúvida, de primeira qualidade. Aí a parceira, subitamente tomada por uma crise de consciência, disse que queria voltar lá para tirar aqui a limpo. “Mas, nós fomos roubados”. E eu, socorrido pelo mestre paraense, me lembrei dos versos da canção do camelô. Não, não fomos roubados, ninguém nos obrigou a pagar aquela conta maluca. O rapazinho até se prontificou a mostrar os valores discriminados de tudo o que compramos e nenhum de nós dois, parceira e eu, em plena crise do ataque de besteira, nos dispusemos a conferir. 

O resto da noite ficou com aquele gostinho de corrimão de pensão de polaco e passamos a evitar nos olhar muito com receio de que a cara de otário de um remetesse à cara de otário do outro. Voltar lá, só se fosse para assinar o diploma de otário que os dois doutores tinham acabado de conquistar. Pois é, parceira, vamos ficar quietos, dar risada, comer as frutas todas e entrar no espírito da coisa, assumindo que não há quem nunca tenha, em algum momento da vida, interpretado o papel da figura descrita pelo saudoso Billy Blanco: “E ele prova, à sua maneira, que um ataque de besteira, faz de um doutor um otário”. 

(*) Advogado, avô, corintiano e morador em São Bernardo (SP) 

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