domingo, 16 de fevereiro de 2014

A morte, o tempo e o velho

De Mia Couto no livro "Na Berma de Nenhuma Estrada" 

O homem se via envelhecer, sem protesto contra o tempo. 
Ansiava, sim, que a morte chegasse. Que chegasse tão sorrateira e morna como lhe surgiram as mulheres da sua vida. Nessa espera não havia amargura. 
Ele se perguntava: de que valia ter vivido tão bons momentos se já não se lembrava deles, nem a memória de sua existência lhe pertencia? 
Em hora de balanço: nunca tivera nada de que fosse dono, nunca houve de quem fosse cativo. Só ele teve o que não tinha posse: saudade, fome, amores. 
Como a morte tardasse, decidiu meter-se na estrada e caminhar ao seu encontro. 
Tomou a direção do oeste. 
Na sombra desse ponto cardeal, todos sabemos se encontra a moradia da morte. 
Iniciou a sua excursão rumo ao poente sem que de ninguém se despedisse.
Os adeuses são assunto dos vivos e ele se queria já na outra vertente do tempo. Caminhava há semanas quando avistou um homem alto, um rosto de enevoados traços. Trazia pela trela um bicho estranho, entre cão e hiena. 
Animal mal-aparentado, com ar maleitoso. 
- Esta é a morte - disse o homem apontando o cão. 
E acrescentou - Sou eu que a passeio pelo mundo. 
- E você quem é? 
- Eu sou o Tempo. 
E explicou que caminhavam assim, atrelados um ao outro, desde sempre. 
Ultimamente, porém, a Morte andava esmorecida, quase desqualificada. 
Razão de que, entre os vivantes, se desfalecia agora a molhos vistos, por dá cá nenhuma palha. 
Morria-se mesmo sem intervenção dela, da Morte. 
O velho, desiludido, explicou ao Tempo a razão da sua viagem. 
Ele vinha ao encontro da Morte: 
- Eu queria que ela me levasse para o sem retorno. 
- Vai ser difícil. 
- Lhe imploro: fiz todo este caminho para ela me levar. 
- Veja como ela anda: desmotivada, focinho pelo chão.
- Mas eu queria tanto terminar-me! 
- Impossível, insistiu o Tempo. 
E para comprovar, soltou o animal. 
O bicho se afastou, arrastado e agônico, para o fundo de uma valeta. 
Ali se enroscou decadente como um pano gasto. 
O velho se condoeu e perguntou ao bicho: 
- O que posso fazer por si?
- Eu só quero beber. 
Não era de água a sua sede. Queria palavras. 
Não dessas de uso e abuso nas palavras tenras como o capim depois da chuva.
Essas de reacender crenças. 
O velho prometeu garimpar entre todos os seus vocabulários e encontrar lá os materiais de reacender o mais perdido fôlego. 
Urdia, seu secreto plano: iria ao sonho e de lá retiraria uma paixão de palavras. 
Na manhã seguinte, foi de encontro à besta moribunda. 
O bicho estava agora mais hiena que cão. 
Uma baba amarela lhe escorria pelo focinho. 
Apenas revirou os olhos quando sentiu o homem se aproximar. 
- Trouxe? 
E ele lhe entregou o sonho, as palavras, mais seu inebriamento. 
O animal sugou tudo aquilo com voracidade. 
Seus olhos eram os de uma criança sorvendo estória antes do sono. 
E assim se seguiram durante umas manhãs. 
Em cada uma, o velho se anichava e confiava seus elixires. 
De cada vez, o bicho se animava mais um pouco. 
No final, a Morte se recompôs com tais pujanças que o velho ganhou coragem e lhe apresentou o pedido, seu anseio de que o mundo se lhe fechasse. 
A Morte escutou o pedido de olhos fechados. 
- Amanhã vou cumprir o meu mandato - anunciou ela. 
Nessa noite, o velho nem dormiu, posto perante a sua última noite. 
Sentindo-se derradeiras, passou em revista a sua vida. 
Nos últimos anos, ele tinha perdido a inteira memória. 
Mas agora, naquela noite, lhe revieram os momentos de felicidade, toda a sua existência se lhe desfilou. e sentiu saudade, melancolia por não poder revisitar amigos, terras e mulheres. até lhe assaltou a ideia de escapar dali e reganhar aventuras no caminho da vida. 
Para não ser atacado por mais recordações - com o risco do arrependimento - ele foi ao rio e caminhou ao sabor da corrente. 
Andar no sentido da água é o modo melhor para nos lavarmos das lembranças. 
No dia seguinte, o velho foi à valeta onde encontrou a Morte. 
Ela estava cansada, respiração ofegante. 
E disse: - Já matei. 
- Matou? Matou quem? 
- Matei o Tempo! 
E apontou o corpo desfalecido do homem alto. 
A hiena, então, estendeu a trela ao velho e lhe ordenou: 
- Agora leva-me tu a passear! 

(*) Pseudônimo de António Emílio Leite Couto, é um biólogo e escritor moçambicano

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