quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

No campo anuncia-se o silêncio

Zander Navarro (*) 

Novos estudos internacionais vêm revelando os impactos da recente crise econômica mundial na agropecuária e nas sociedades rurais. São conjunturas dramáticas sob as quais se impõe a lei da selva, pois os governos hesitam e as estruturas de proteção social se enfraquecem ante os inevitáveis conflitos em torno do acesso aos recursos. Corroída a legitimação da autoridade, a instabilidade econômica e a insegurança política se aprofundam. É quando os mais fortes tendem a prevalecer. 

As pesquisas demonstram tendências similares em curso na agricultura dos Estados Unidos e no conjunto dos 27 países da União Europeia. São regiões que realizaram censos agrícolas pós-2008, permitindo avaliações comparativas dos efeitos do trauma econômico no mundo rural. Entre inúmeras conclusões, eis algumas: concentração da produção, o peso da tecnologia se torna decisivo, o assalariamento quase desaparece e, também, os chamados produtores médios vão sendo encurralados, diante do avassalador domínio das propriedades de larga escala. O rural encolhe e, com a escassez da mão de obra, discute-se até o uso de robôs no ciclo produtivo. Mas nas duas regiões cresce o número de micropropriedades, em razão de entrantes que não são agricultores, mas cidadãos urbanos que aspiram a ter um "pé na natureza" - ou, então, porque fogem da crise. 

E o Brasil? Estaria o País observando as mesmas mudanças? As pesquisas não são conclusivas nem temos ainda os censos para comparação. A crise econômica, no caso específico da agropecuária, não produziu efeitos negativos, pois os preços dos alimentos no geral subiram ao longo dos últimos anos, beneficiando os produtores, assim como expandimos nossas exportações e cresceu a demanda interna. Cada vez mais concentrada, a agricultura brasileira afirmou-se como uma operosa máquina de produção e acumulação de riquezas, salvando os saldos comerciais e contribuindo decisivamente para a manutenção da estabilidade macroeconômica, mesmo nos momentos mais graves da crise. 

Se o desempenho produtivo, tecnológico e financeiro foi espetacular nesse período, também teria sido assim sob outros focos? De fato, o principal desafio no campo brasileiro é social, pois em todos os Estados é alarmante o abandono da atividade, sobretudo pelos moradores mais jovens. A pobreza persistente, o acirramento concorrencial que concentra a produção, a atração do emprego urbano e as facilidades migratórias são alguns fatores que têm contribuído para o êxodo do campo. O resultado é a gradual reconfiguração de uma nova sociedade rural. Quem estaria permanecendo nessas regiões? 


Primeiramente, o maior grupo social: um conjunto envelhecido formado pelos "pobres do campo" com acesso à terra. Constituem a vasta maioria, mas parte expressiva dos membros jovens das famílias foi embora, deixando para trás, quase invariavelmente, um casal de idosos que vive de aposentadoria ou de algum auxílio estatal. Talvez em um decênio, contudo, é geração que passará, deixando imensa lacuna demográfica e promovendo a desertificação populacional em nosso vasto interior. 

Numericamente, o segundo agrupamento mais expressivo é formado por uma típica classe média de pequenos produtores com algum grau relevante de integração econômica e moderna atividade produtiva. Se os primeiros, em maior proporção, moram no Nordeste rural, esse segundo grupo ocupa propriedades, particularmente, no Centro-Sul. Respondem pela maior proporção da produção de diversos ramos, da avicultura à floricultura, da suinocultura à produção de vários tipos de frutas, da horticultura à fumicultura. Mas atenção: embora agricultoras, essas famílias já moram em grande número nas cidades e encontram bloqueios crescentes na sucessão familiar, pois seus filhos nem sempre querem assumir o negócio. 

O terceiro conjunto a destacar é formado pelos assalariados rurais, usualmente sem terra. São trabalhadores que vivem uma situação curiosa: os salários estão subindo, mas também crescem as exigências do ofício, cada vez mais especializado, pois a agricultura tecnologicamente avançou muito. Como são trabalhadores de baixíssimas escolaridade e capacitação profissional, a maior parte vai engrossando as correntes migratórias que deixam o campo. E assim, com a redução da oferta de mão de obra, os salários sobem ainda mais e os empregadores, gradualmente, vão trocando por máquinas o trabalho manual que antes prevalecia. A consequência é uma notável onda de mecanização que vai transformar ainda mais a face agrícola do Brasil. 

Há ainda um reduzido estrato: são os endinheirados, mas não necessariamente os super-ricos, como às vezes se apregoa. Parte é uma classe média rural com rendas mais altas e parte, a burguesia agrária. Moram nas cidades, mas supervisionam seu negócio. São produtores que enfrentam iguais problemas de sucessão na atividade, pois seus filhos, quase sempre educados em outras profissões, não se interessam pelo campo. 

Sobrariam outros grupos menores, como comunidades indígenas e quilombolas. E há os assentados, que deveriam ser expressivos. Afinal, seria um conjunto de 1,25 milhão de famílias em 8,8 mil assentamentos, ocupantes de 88 milhões de hectares, quase equivalentes à área total de Mato Grosso. Mas a reforma agrária é um rotundo fracasso: boa parte dos beneficiários desistiu, deixando rarefeitos os assentamentos, em especial do meio do País "para cima", sobretudo no Nordeste e no Norte. 

Confrontado com esse inquietante contexto de mudanças, surpreende o imobilismo governamental e espanta a omissão do sindicalismo que deveria representar os mais pobres. Ignoram a nova urgência social - "salvar a pequena produção"! - e parecem concordes com a tendência de esvaziamento do campo e o inchamento das cidades brasileiras. Cada vez mais, as regiões rurais perdem vozes e ganham o silêncio. 

(*) É sociólogo e professor aposentado da UFRGS. E-mail: z.navarro@uol.com.br

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