segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Os olimpianos e as curvas da estrada

Gaudêncio Torquato (*)  

Um oceano de distância separa os territórios de artistas como Roberto Carlos (que saudades das curvas da estrada de Santos...), Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros de áreas frequentadas por figuras exponenciais da política e do governo. Mas uma condição os torna habitantes da mesma constelação: a visibilidade de seus perfis, que lhes confere fama e poder. O mesmo ocorre com jogadores de futebol, atores e atrizes de novelas, príncipes e princesas de monarquias que ainda povoam o mapa das nações. Ao lado de um político comum, Pelé, Neymar ou Messi, a atriz Deborah Secco, o ator Antônio Fagundes ou William e Kate, duque e duquesa de Cambridge, certamente ganhariam mais palmas, não se descartando a hipótese de apupos dirigidos ao detentor de mandato popular. Se o político, porém, dispuser de extraordinário poder, como Barack Obama, que preside a maior potência do planeta, seria razoável pensar em efusivos aplausos para ele. 

A admiração por uns e a rejeição a outros decorre da simbologia que encarnam, um formidável arco de conceitos e situações que abarca o mundo das diversões; as esferas da política, com seus graus diferenciados de poder; os reinos que fazem lembrar contos de fadas, onde os olhares se embevecem com casamentos entre príncipes e plebeias, que entram nos palácios e ascendem às alturas; as novelas noturnas, com dramas e tramas psicológicas, fontes de catarse e consolação de plateias fiéis aos personagens; os shows musicais, que permitem às multidões fruir um frenesi coletivo, abrindo a garganta para acompanhar bandas e cantores, sob a cadência movimentada de corpos e braços; os espetáculos esportivos, em que torcedores fanáticos aplaudem seus ídolos e xingam adversários e o juiz da partida, beijando a camisa dos times e promovendo a integração de sentimentos e paixões. 


Essa moldura do novo Olimpo, que o filósofo e educador Edgar Morin descreve como o habitat das vedetes do Estado-espetáculo, é iluminada todos os dias pela fosforescência midiática. Os tipos, com sua dualidade divino-humana, alguns elevados à categoria de heróis do cotidiano, tornam-se onipresentes em todos os setores da cultura de massa. 

Essa casta desperta curiosidade e admiração. Afinal, indagam-se os mortais, eles fazem as mesmas coisas que fazemos? Enfrentam dificuldades, acordam cedo, tomam banho, têm dores de cabeça, queixam-se da dureza do dia a dia, ou sua rotina é um desfile interminável de almoços e jantares, conversas e festas? Para entrar nesses céus envoltos em mistério, as pessoas comuns se valem dos fenômenos da projeção e da identificação, que os fazem transferir seu ambiente psicológico para o universo das celebridades, depois de conhecer seu lado humano e se identificar com seus gostos, atitudes e pensamentos. A felicidade flui quando alguém descobre: "Puxa, sou um pouco parecido com ele (o ídolo)". 

Nessa esteira se multiplicam as histórias sobre a "vida pessoal" dos famosos, ao mesmo tempo que se expandem as revistas ilustradas e de faits divers, com matérias sobre o mundo artístico. As biografias não autorizadas constituem o acervo mais denso desse nicho. São ferramentas para furar as muralhas que cercam as fortalezas em que se encastelam estrelas da constelação olimpiana. 

Dito isto, vem a pergunta: as vedetes da cultura de massa podem ter biografias não autorizadas ou os relatos devem receber sua prévia autorização? A resposta comporta, de início, considerar a faceta pública desses semideuses, tanto os políticos quanto os artistas. Uns e outros têm deveres para com a sociedade. Dependem do público. A partir do momento em que suas atividades são massificadas - fator de sucesso profissional -, submetem-se ao ordenamento ético de prestar contas a quem os acompanha. Que inclui relatos não apenas das retas, mas das curvas de sua existência. A essa posição pública do artista e do político se soma o ditame constitucional que acolhe a manifestação de pensamento e da informação sem restrição. 

Se a honra, a privacidade e a imagem das pessoas são invioláveis, ainda nos termos constitucionais, lembre-se que há dispositivos no Código Penal contra danos morais, calúnia (artigo 138), difamação (artigo 139) e injúria (artigo 140), além da restrição às biografias prevista pelo artigo 20 do Código Civil. Países democráticos, como EUA, Canadá, Reino Unido, França, Espanha, não admitem nenhuma censura às biografias não autorizadas, ao contrário de Rússia, China e Síria, por exemplo. 

Imagine-se a execração pública de Bill Clinton se censurasse biografia sobre sua trajetória presidencial, nela incluído o episódio com a estagiária Mônica Lewinski. Aliás, os norte-americanos estão lendo avidamente o livro Sexo na Casa Branca, do historiador David Eisenbach e do editor Larry Flynt, que conta histórias impactantes, algumas conhecidas, mas não relatadas com detalhes, como as que envolveram os presidentes Abraham Lincoln, Thomas Jefferson, James Buchanan, Franklin Roosevelt e John Kennedy. 

Houvesse censura na Inglaterra, a história do príncipe Charles e Camila Parker teria sido guardada no baú. E também o caso mais escandaloso da política inglesa: o envolvimento do ministro da Guerra, John Profumo, com a modelo Christine Keeler, no começo dos anos 60. 

Isso é importante? Sem dúvida. São as entranhas da política. 

Estabelecer patamar diferente para políticos e artistas é defender tratamento privilegiado. É formar uma casta dentro da casta. Biografias autorizadas são livros de autoglorificação, loas ao biografado. E querer cobrar do autor porcentagem pela obra é apropriar-se de um direito que não pertence ao artista. Nas situações em que as biografias alavanquem a venda de discos, o autor da obra teria direito a um porcentual da vendagem? 

Livros maldosos e mentirosos devem ir, sim, para a fogueira. Pelas mãos dos leitores, não pelo tacão da censura. 

(*)Jornalista, Professor Titular da USP, é Consultor Político e de Comunicação. 
 Twitter: @GAUDTORQUATO

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