sexta-feira, 3 de maio de 2013

Debutando na ficção

Bellini Tavares de Lima Neto (*) 

Às vezes me vem à cabeça a imensa lista de talentos que eu invejo. Grandes compositores, instrumentistas brilhantes, atores capazes de emocionar toda uma plateia, poetas, escritores, a lista é quase interminável. E, justamente porque é longa, quase sempre eu acabo me esquecendo de alguns tipos de integrantes dela. Agora, por exemplo, quase eia me esquecendo dos ficcionistas. 

Os ficcionistas me fascinam, me seduzem e, é claro, me fazem sentir o gostinho pecaminoso da mais pura inveja. Não é aquela inveja venenosa e sim aquela vontade danada de, quem sabe um dia, poder conseguir criar as situações inusitadas, surpreendentes, completamente inesperadas que esses mágicos da realidade são capazes de inventar. Basta ver as histórias policiais em que o culpado passa a trama inteira sem que ninguém tenha a mais leve desconfiança. Ou certos romances em que alguém carrega consigo um segredo terrível que, quando revelado, muda todo o curso da história, mas só aparece bem no fim e sem que desperte a menor suspeita no leitor. 

Talvez, quem sabe, por causa dessa minha fixação pelos ficcionistas, não é que me surgiu uma ideia? Pois é, parece que caiu do céu, diretamente para dentro da minha velha e pouco preenchida cabeça, uma historinha dessas. Pode ser que eu já tenha lido alguma coisa parecida e não me lembre. E, como não me lembro ou, quem sabe, não queira me lembrar, aí fico pensando que saiu da minha própria imaginação. Se não for, fica por conta da coincidência. Essas coisas às vezes acontecem. Não é por maldade, só coincidência ou acidente. Como os jornais tem falado muito sobre essas regras de trânsito e gente reclamando das multas, dos tais pontos na carteira, a minha historinha começou a caminhar mais ou menos por aí. 


Um camarada, um sujeito comum, recebeu uma comunicação do órgão do trânsito da cidade. Ainda não achei um nome para a cidade. Isso fica para depois. A comunicação dizia que o camarada tinha uma porção de multas e, em consequência, uma baita quantidade de pontos na carteira de motorista. Em razão disso, o sujeito ia ser proibido de dirigir por algum tempo. Lá vai, então, o camarada até o órgão de trânsito. A lista de infrações era longa e todas muito parecidas, coisa de passar a 70 por hora em lugar onde o limite era 60. Tudo muito bem registrado pelo radar. Como diziam as mães de antigamente, o que não tem remédio, remediado está. O acusado, então, entrega a carteira de habilitação. Mas, a mocinha do balcão não está lá para fazer nada tão simples assim. Afinal, em historinha de ficção alguém tem que criar caso, dificultar o desfecho, caso contrário a ficção não se estabelece. E a mocinha do balcão explica ao sujeito que ele tem que fazer uma defesa. Mas, que defesa? O radar pegou tudo, que defesa se pode fazer? O sujeito ainda tenta argumentar que não tem o que dizer em sua defesa, mas a mocinha, ciente de seu papel fundamental numa historia de ficção, esclarece que tem que ter defesa. Não interessa, tem que fazer defesa. O camarada, então, se dá por vencido, vai para casa e faz uma defesa. 

Dias depois o individuo volta ao balcão da mocinha com a defesa. Ela recolhe, coloca numa pastinha, prepara um outro papelzinho que tem jeito de recibo, mete o proverbial carimbo e entrega o troféu ao acusado. Agora, ele já virou acusado ou recorrente ou qualquer outro nome pomposo e que dá um considerável tempero a qualquer obra de ficção. O mais importante: agora, tudo virou um processo e processo, em história de ficção, vale um tesouro. O réu (meu personagem, agora, é réu e um réu num processo numa ficção tem um apelo todo especial) pergunta quando terá que cumprir a pena. A mocinha esclarece que só depois que o recurso tiver sido julgado e ele, réu, for intimado. E até lá? Até lá, tudo fica igual, o sujeito pode dirigir e até cometer outras infrações. 

O tempo vai passando e nenhum resposta aparece. O sujeito resolve dar um pulinho na repartição, até mesmo por curiosidade e é informado de que ainda não tem solução. Vem Natal, Ano Bom, férias, Carnaval, Páscoa, está na hora de o infrator renovar a carta de habilitação que vai vencer daí a algumas semanas. O personagem, agora, tem um mês para fazer a renovação, mas, ao que tudo indica, não vai haver renovação nenhuma porque a situação está empacada. O réu, então, volta à repartição. Uma outra mocinha vai atender. Ele explica a história toda, ela devolve um sorriso bonitinho e simpático e diz que vai verificar. 

Eu fui indo bem até nesse ponto. Nessa hora eu comecei a suar frio. Estava chegando perto do fim da minha história de ficção e, de repente, parece que o milagre que vinha vindo do céu resolveu secar. Não sabia que final podia dar. É claro que teria que ser um final de impacto, aquele tipo de situação que ninguém imagina e, quando acontece, seguem-se aqueles “ah”, “oh”, “puxa vida, que idéia” e outras expressões de espanto, fora um ou outro palavrão que eu evito por uma questão de respeito. Queimei as pestanas e, então, decidi pelo óbvio em qualquer historinha de ficção. Resolvi terminar de um jeito meio bem surpreendente, quase absurdo, uma espécie de inseto burocrático. 



A mocinha volta do lugar onde tinha ido buscar os papeis e, olhando o camarada com um olharzinho meio maroto, informa que o caso já estava julgado há um tempão. O réu tinha sido condenado a 90 dias de suspensão do seu direito de dirigir. O sujeito, então, apelando para um argumento dos mais disparatados, informa que não tinha sido informado. Pior que isso, ainda se atreve a perguntar se o órgão do trânsito não teria tido que mandar uma comunicação, do jeito que tinha sido quando tudo começo. E a mocinha, olhos inocentes, porem de um brilho meio mefistofélico, meio “hollywoodiano” diz: “Mas você é que deveria ter vindo saber pelo menos uma vez por mês. Se tivesse vindo, já teria cumprido pena e já estaria livre”. 

Achei que, terminando assim, a minha história ia ficar com um jeitão de impacto, surpresa e, ao mesmo tempo, incógnita, meio Pirandello, meio Ionesco. Não sei se exagerei demais com respeito ao quesito do absurdo, mas, para a primeira vez, achei que não ficou ruim. Só falta achar um nome para a cidade. 

(*) Advogado, avô, corintiano e morador em São Bernardo do Campo (SP)

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