Matheus Pichonelli (*) para CartaCapital
“Sabe qual a diferença entre o chuchu e a Xuxa? É que chuchu é comida de preto pobre”. A piada fazia a alegria do público durante as apresentações de um comediante hoje cultuado e que agora vive às turras com a onda do politicamente correto. Foi, talvez, a piada que mais ouvi entre os adultos que frequentavam a minha casa no meio dos anos 1980. Estava em uma fita K7 dos melhores momentos da obra do piadista.
Pelé, o “preto rico” implícito na brincadeira, era namorado da apresentadora Xuxa Meneghel, a “comida” da história. A gracinha era repetida por crianças e adultos sem o menor pudor.
Pelé estava aposentado havia cerca de dez anos. Tinha três Copas, dois mundiais interclubes e mais de mil gols na sacola. O currículo não o impedia de ser ridicularizado em apresentações para o grande público ou nas rodas privadas das melhores famílias.
Já adulto, me perguntava se Pelé em algum momento da vida ouviu essa piada.
E, se ouviu, como reagiu. Sobretudo me perguntava o que aconteceria quando o Atleta do Século, capaz de parar uma Guerra na África, se revoltasse. Ele chutaria a mesa?
Socaria as paredes? Pararia um país no combate permanente contra a sua própria exclusão?
Soube da resposta hoje pela manhã ao ler o que o maior atleta de todos os tempos disse sobre o caso de racismo sofrido pelo goleiro Aranha, do Santos: “Se eu fosse parar o jogo cada vez que me chamassem de macaco ou crioulo, todo jogo teria de parar. O torcedor, dentro da animosidade, ele grita”; “Acho que temos que coibir o racismo, mas não é em lugar público que vai coibir”; “Quanto mais atenção der para isso, mais vai aguçar”.
Para o ídolo do Santos e da seleção brasileira, ser chamado de “macaco” não era razão suficiente para parar um jogo de futebol, que dirá parar o País.
Para ele, o mundo é assim porque é assim: ele é cruel, mas basta fingir que a crueldade não existe para que o racismo morra por inanição. A estratégia deve dar resultado.
Tem sido assim desde 13 de maio de 1888. Funciona tanto que, cem anos depois da Abolição, o maior jogador de todos os tempos era alvo de piada, contada em público e na frente das crianças, por namorar uma jovem branca, chamada descaradamente de “comida de preto rico”. A piada era tudo o que tínhamos de pior em duas únicas frases.
Conseguia ser racista, machista e sexista ao mesmo tempo.
Se não é motivo suficiente para vomitar, não sei mais o que chamar de ânsia.
Tempos atrás, saí da sessão do filme Lincoln, de Steven Spielberg, vingado pela história do presidente que dobrou seus pares brancos no Congresso para aprovar a emenda da Abolição nos EUA. Pensava, sobretudo, em como avançamos de lá para cá.
Estava em um shopping de São Paulo e minha empolgação se acabava à medida que me aproximava da porta de saída. Não havia negros na plateia. Nem nos corredores do shopping. Os que havia usavam uniforme. Só me reencontrei com o Brasil real no ponto de ônibus. Eram poucos passos para o homem, mas um fosso gigante para a humanidade, ladeada por uma barreira de cadeados invisíveis a separar um país do outro.
Essa barreira existe porque, diante da ofensa da exclusão, ora chamada de injúria racial, optamos por seguir o jogo. Hesitamos em levar nossos criminosos para a cadeia.
Porque, desde criança ouvimos quietos os professores, os políticos e demais figuras públicas desafiarem a própria inteligência ao dizer em voz alta que racismo é preconceito de negros contra eles mesmos e que o Brasil tem problemas mais sérios para resolver. Como se jogar a humanidade de alguém no lixo ao chama-lo de “macaco”, como definiu o rapper Emicida em entrevista ao site A Ponte, não fosse motivo suficiente para a rebelião.
Essa barreira existe porque, bem ou mal intencionados, fazemos coro à ofensa ao defender que basta ignorar nossas incompetências históricas para que elas simplesmente se resolvam. Elas não se resolvem. Elas estão muito bem acomodadas em um colchão de silêncio, de medo e de esperança inútil.
O racismo dói, disse o goleiro Aranha repetidas vezes ao fim da partida contra o Grêmio. Dói. É possível que doa nele tanto quanto dói em Pelé, mas só um decidiu pronunciar a própria dor, que é a dor de um país inteiro. O outro pede para que o jogo simplesmente continue. O silêncio é a argamassa da barreira que vitima a todos há mais de um século. Ela só será estatelada quando houver no mundo mais Aranha do que Pelé.
(*) Jornalista e cientista social, escreve sobre cultura e comportamento no site de CartaCapital.
“Sabe qual a diferença entre o chuchu e a Xuxa? É que chuchu é comida de preto pobre”. A piada fazia a alegria do público durante as apresentações de um comediante hoje cultuado e que agora vive às turras com a onda do politicamente correto. Foi, talvez, a piada que mais ouvi entre os adultos que frequentavam a minha casa no meio dos anos 1980. Estava em uma fita K7 dos melhores momentos da obra do piadista.
Pelé, o “preto rico” implícito na brincadeira, era namorado da apresentadora Xuxa Meneghel, a “comida” da história. A gracinha era repetida por crianças e adultos sem o menor pudor.
Pelé estava aposentado havia cerca de dez anos. Tinha três Copas, dois mundiais interclubes e mais de mil gols na sacola. O currículo não o impedia de ser ridicularizado em apresentações para o grande público ou nas rodas privadas das melhores famílias.
Já adulto, me perguntava se Pelé em algum momento da vida ouviu essa piada.
E, se ouviu, como reagiu. Sobretudo me perguntava o que aconteceria quando o Atleta do Século, capaz de parar uma Guerra na África, se revoltasse. Ele chutaria a mesa?
Socaria as paredes? Pararia um país no combate permanente contra a sua própria exclusão?
Soube da resposta hoje pela manhã ao ler o que o maior atleta de todos os tempos disse sobre o caso de racismo sofrido pelo goleiro Aranha, do Santos: “Se eu fosse parar o jogo cada vez que me chamassem de macaco ou crioulo, todo jogo teria de parar. O torcedor, dentro da animosidade, ele grita”; “Acho que temos que coibir o racismo, mas não é em lugar público que vai coibir”; “Quanto mais atenção der para isso, mais vai aguçar”.
Para o ídolo do Santos e da seleção brasileira, ser chamado de “macaco” não era razão suficiente para parar um jogo de futebol, que dirá parar o País.
Para ele, o mundo é assim porque é assim: ele é cruel, mas basta fingir que a crueldade não existe para que o racismo morra por inanição. A estratégia deve dar resultado.
Tem sido assim desde 13 de maio de 1888. Funciona tanto que, cem anos depois da Abolição, o maior jogador de todos os tempos era alvo de piada, contada em público e na frente das crianças, por namorar uma jovem branca, chamada descaradamente de “comida de preto rico”. A piada era tudo o que tínhamos de pior em duas únicas frases.
Conseguia ser racista, machista e sexista ao mesmo tempo.
Se não é motivo suficiente para vomitar, não sei mais o que chamar de ânsia.
Tempos atrás, saí da sessão do filme Lincoln, de Steven Spielberg, vingado pela história do presidente que dobrou seus pares brancos no Congresso para aprovar a emenda da Abolição nos EUA. Pensava, sobretudo, em como avançamos de lá para cá.
Estava em um shopping de São Paulo e minha empolgação se acabava à medida que me aproximava da porta de saída. Não havia negros na plateia. Nem nos corredores do shopping. Os que havia usavam uniforme. Só me reencontrei com o Brasil real no ponto de ônibus. Eram poucos passos para o homem, mas um fosso gigante para a humanidade, ladeada por uma barreira de cadeados invisíveis a separar um país do outro.
Essa barreira existe porque, diante da ofensa da exclusão, ora chamada de injúria racial, optamos por seguir o jogo. Hesitamos em levar nossos criminosos para a cadeia.
Porque, desde criança ouvimos quietos os professores, os políticos e demais figuras públicas desafiarem a própria inteligência ao dizer em voz alta que racismo é preconceito de negros contra eles mesmos e que o Brasil tem problemas mais sérios para resolver. Como se jogar a humanidade de alguém no lixo ao chama-lo de “macaco”, como definiu o rapper Emicida em entrevista ao site A Ponte, não fosse motivo suficiente para a rebelião.
Essa barreira existe porque, bem ou mal intencionados, fazemos coro à ofensa ao defender que basta ignorar nossas incompetências históricas para que elas simplesmente se resolvam. Elas não se resolvem. Elas estão muito bem acomodadas em um colchão de silêncio, de medo e de esperança inútil.
O racismo dói, disse o goleiro Aranha repetidas vezes ao fim da partida contra o Grêmio. Dói. É possível que doa nele tanto quanto dói em Pelé, mas só um decidiu pronunciar a própria dor, que é a dor de um país inteiro. O outro pede para que o jogo simplesmente continue. O silêncio é a argamassa da barreira que vitima a todos há mais de um século. Ela só será estatelada quando houver no mundo mais Aranha do que Pelé.
(*) Jornalista e cientista social, escreve sobre cultura e comportamento no site de CartaCapital.
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