João Mellão Neto (*)
Não há nada que sobreviva ao teste do tempo. Os crimes mais cruéis, os de motivação das mais torpes, com o passar dos anos têm suas cores esmaecidas, deixam de chocar as pessoas, e chegam até a perder o sentido. Por mais revolta que nos cause, certo estava Delúbio Soares, o ex-tesoureiro do PT e do mensalão, quando afirmou que, alguns anos depois, o escândalo seria lembrado como uma mera "piada de salão". Uma afirmação ousada e atrevida, sem dúvida. Mas não totalmente desprovida de sentido.
Pois essa jogada de procrastinar os resultados do julgamento da Ação Penal 470 está sendo novamente levada à prática e, de tão usual, não existe um único bom advogado que não a conheça ou deixe de praticá-la. Quando a barra está pesada para os réus, quando há evidências concretas sobre a culpabilidade deles, quando a opinião pública por inteiro está enfurecida e impaciente, quando ela clama por derramamento de sangue, se possível com violência, e exige nada menos do que o empalamento dos supostos culpados, pouco resta a fazer senão pleitear com veemência o adiamento, ao máximo, da data do julgamento.
O fato é que o passar do tempo tem um efeito apaziguador na alma das multidões. Enquanto o tempo se esvai, as pessoas ficam mais condescendentes. E o calor dos acontecimentos se transforma numa leve brisa de descontentamentos.
Como relatado, quanto mais hediondo o crime, mais tempo é necessário para dissipar as eventuais raivas e os rancores que ele possa vir a despertar. Alguém se lembra, hoje em dia, de quais foram as acusações que pesaram sobre Virgulino Ferreira da Silva, o cangaceiro do século passado conhecido como Lampião? Há, hoje em dia, quem o perdoe, a despeito das formas extremamente cruéis com que punha termo à vida dos seus inimigos.
Não contente com isso, Lampião assaltava fazendas e para dar cabo dos seus desafetos estuprava coletivamente, sequestrava crianças e marcava o rosto das mulheres com ferro quente. E ainda arrancou a sangue-frio olhos, orelhas, cortou línguas e assassinou um prisioneiro na frente da própria mulher, que lhe implorava perdão. Se fosse capturado hoje, talvez recebesse o indulto, seus bárbaros crimes seriam relativizados e ele pegaria, no máximo, alguns anos de cadeia.
Como já foi afirmado, a ira humana se apazigua com o passar do tempo. Os advogados sabem disso. E eles conhecem a alma humana como ninguém.
Quando o escândalo do mensalão se configurou, produzindo dezenas de réus, uma caça ao tesouro se produziu em Brasília: havia emprego para todos os bons advogados.
Os melhores se encarregariam das estrelas, como José Dirceu, José Genoino e o já citado Delúbio. Os outros - coordenados pelos primeiros - cuidariam dos demais. Recursos financeiros não haveriam de faltar em nenhum momento. Como é sabido nos meios forenses, os culpados são sempre os que pagam melhor, uma vez que lidam com tudo aquilo a que o homem atribui maior importância: a honra, a liberdade e o patrimônio.
Ficarão para as calendas, agora, as indagações maiores de todo esse processo.
1) Quem recebeu de quem? Se Cristo foi vendido por 30 moedas, por quantos dinheiros foram "comprados" os advogados de agora?
2) O preço foi justo ou poderia ter sido cobrado mais?
3) Há mais gente envolvida nessa história?
O ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva jura de pés juntos que de nada sabia sobre o mensalão, apesar de as tramas terem sido tecidas na sala vizinha à dele no Palácio do Planalto. Devemos acreditar nessa versão de Lula? Ou tratar de engoli-la, acreditando na propaganda tão difundida que garante que com maionese dá?!
A dúvida que nos fica, agora, se refere às nossas instituições e à reverência quase sagrada que lhes devemos dedicar. Um sábio norte-americano já afirmou que as instituições de uma nação são algo assim como os cabos de alta tensão: à primeira vista, eles nos parecem frágeis e quebradiços a ponto de nenhum pássaro, por menor que seja, se arriscar a neles pousar. Mas tudo isso é apenas aparência. Basta que ousemos tocá-los para que sejamos implacavelmente fulminados e carbonizados por eles.
Nada disso é lorota. Nos Estados Unidos da América, que escreveram a primeira Constituição do mundo moderno, a Lei Maior é tida como sagrada pelo povo. E ai de quem ouse desafiá-la...! Já a nossa Carta Magna, coitada, foi reescrita dezenas de vezes, com a periodicidade, talvez, de um catálogo telefônico.
Há uma passagem sábia e significativa que nos vem da Grécia antiga. Sócrates, o grande sábio, incomodava as pessoas mais cultas com suas perguntas sempre certeiras e de lógica irrespondível. Em outras palavras, ele as obrigava a pensar. Logo a juventude se acercou do filósofo ateniense e passou a adotar o seu método. Isso foi o início de seu fim.
Após um longo processo, os sábios de Atenas o condenaram à morte. O método escolhido foi lento e doloroso: Sócrates teria de ingerir a infusão de uma planta venenosa conhecida como cicuta (Conium maculatum) e aguardar os tenebrosos efeitos. Seus amigos o cercaram enquanto ele agonizava.
Platão, seu discípulo mais dileto, assistiu a tudo inconformado. A certa altura, dirigindo-se ao mestre, tratou de questioná-lo: "Por que, mestre, você se dispõe a morrer? Nós já lhe preparamos uma rota de fuga segura e você não correrá nenhum risco. Não há ninguém na Grécia que não o receberia de bom grado. Por que, então, ficar aqui?"
"Meu bom amigo Platão", respondeu-lhe Sócrates, "se eu me for, estarei renegando tudo o que venho pregando em toda a minha vida: se os homens bons não obedecerem às leis más, que garantia teremos de que os homens maus venham a respeitar as leis boas?"
(*) Jornalista, foi deputado, secretário e ministro de Estado.
Não há nada que sobreviva ao teste do tempo. Os crimes mais cruéis, os de motivação das mais torpes, com o passar dos anos têm suas cores esmaecidas, deixam de chocar as pessoas, e chegam até a perder o sentido. Por mais revolta que nos cause, certo estava Delúbio Soares, o ex-tesoureiro do PT e do mensalão, quando afirmou que, alguns anos depois, o escândalo seria lembrado como uma mera "piada de salão". Uma afirmação ousada e atrevida, sem dúvida. Mas não totalmente desprovida de sentido.
Pois essa jogada de procrastinar os resultados do julgamento da Ação Penal 470 está sendo novamente levada à prática e, de tão usual, não existe um único bom advogado que não a conheça ou deixe de praticá-la. Quando a barra está pesada para os réus, quando há evidências concretas sobre a culpabilidade deles, quando a opinião pública por inteiro está enfurecida e impaciente, quando ela clama por derramamento de sangue, se possível com violência, e exige nada menos do que o empalamento dos supostos culpados, pouco resta a fazer senão pleitear com veemência o adiamento, ao máximo, da data do julgamento.
O fato é que o passar do tempo tem um efeito apaziguador na alma das multidões. Enquanto o tempo se esvai, as pessoas ficam mais condescendentes. E o calor dos acontecimentos se transforma numa leve brisa de descontentamentos.
Como relatado, quanto mais hediondo o crime, mais tempo é necessário para dissipar as eventuais raivas e os rancores que ele possa vir a despertar. Alguém se lembra, hoje em dia, de quais foram as acusações que pesaram sobre Virgulino Ferreira da Silva, o cangaceiro do século passado conhecido como Lampião? Há, hoje em dia, quem o perdoe, a despeito das formas extremamente cruéis com que punha termo à vida dos seus inimigos.
Não contente com isso, Lampião assaltava fazendas e para dar cabo dos seus desafetos estuprava coletivamente, sequestrava crianças e marcava o rosto das mulheres com ferro quente. E ainda arrancou a sangue-frio olhos, orelhas, cortou línguas e assassinou um prisioneiro na frente da própria mulher, que lhe implorava perdão. Se fosse capturado hoje, talvez recebesse o indulto, seus bárbaros crimes seriam relativizados e ele pegaria, no máximo, alguns anos de cadeia.
Como já foi afirmado, a ira humana se apazigua com o passar do tempo. Os advogados sabem disso. E eles conhecem a alma humana como ninguém.
Quando o escândalo do mensalão se configurou, produzindo dezenas de réus, uma caça ao tesouro se produziu em Brasília: havia emprego para todos os bons advogados.
Os melhores se encarregariam das estrelas, como José Dirceu, José Genoino e o já citado Delúbio. Os outros - coordenados pelos primeiros - cuidariam dos demais. Recursos financeiros não haveriam de faltar em nenhum momento. Como é sabido nos meios forenses, os culpados são sempre os que pagam melhor, uma vez que lidam com tudo aquilo a que o homem atribui maior importância: a honra, a liberdade e o patrimônio.
Ficarão para as calendas, agora, as indagações maiores de todo esse processo.
1) Quem recebeu de quem? Se Cristo foi vendido por 30 moedas, por quantos dinheiros foram "comprados" os advogados de agora?
2) O preço foi justo ou poderia ter sido cobrado mais?
3) Há mais gente envolvida nessa história?
O ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva jura de pés juntos que de nada sabia sobre o mensalão, apesar de as tramas terem sido tecidas na sala vizinha à dele no Palácio do Planalto. Devemos acreditar nessa versão de Lula? Ou tratar de engoli-la, acreditando na propaganda tão difundida que garante que com maionese dá?!
A dúvida que nos fica, agora, se refere às nossas instituições e à reverência quase sagrada que lhes devemos dedicar. Um sábio norte-americano já afirmou que as instituições de uma nação são algo assim como os cabos de alta tensão: à primeira vista, eles nos parecem frágeis e quebradiços a ponto de nenhum pássaro, por menor que seja, se arriscar a neles pousar. Mas tudo isso é apenas aparência. Basta que ousemos tocá-los para que sejamos implacavelmente fulminados e carbonizados por eles.
Nada disso é lorota. Nos Estados Unidos da América, que escreveram a primeira Constituição do mundo moderno, a Lei Maior é tida como sagrada pelo povo. E ai de quem ouse desafiá-la...! Já a nossa Carta Magna, coitada, foi reescrita dezenas de vezes, com a periodicidade, talvez, de um catálogo telefônico.
Há uma passagem sábia e significativa que nos vem da Grécia antiga. Sócrates, o grande sábio, incomodava as pessoas mais cultas com suas perguntas sempre certeiras e de lógica irrespondível. Em outras palavras, ele as obrigava a pensar. Logo a juventude se acercou do filósofo ateniense e passou a adotar o seu método. Isso foi o início de seu fim.
Após um longo processo, os sábios de Atenas o condenaram à morte. O método escolhido foi lento e doloroso: Sócrates teria de ingerir a infusão de uma planta venenosa conhecida como cicuta (Conium maculatum) e aguardar os tenebrosos efeitos. Seus amigos o cercaram enquanto ele agonizava.
Platão, seu discípulo mais dileto, assistiu a tudo inconformado. A certa altura, dirigindo-se ao mestre, tratou de questioná-lo: "Por que, mestre, você se dispõe a morrer? Nós já lhe preparamos uma rota de fuga segura e você não correrá nenhum risco. Não há ninguém na Grécia que não o receberia de bom grado. Por que, então, ficar aqui?"
"Meu bom amigo Platão", respondeu-lhe Sócrates, "se eu me for, estarei renegando tudo o que venho pregando em toda a minha vida: se os homens bons não obedecerem às leis más, que garantia teremos de que os homens maus venham a respeitar as leis boas?"
(*) Jornalista, foi deputado, secretário e ministro de Estado.
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