Eliane Cantanhêde (*)
O embaixador brasileiro no Cairo, Cesário Melantonio, previu na quinta-feira e acertou em cheio: se os "imans" (sacerdotes muçulmanos) se rebelassem contra a censura prévia do governo e convocassem a população a aderir às manifestação na sexta-feira, dia nacional de preces, o Egito iria pegar fogo. Bingo!
As pessoas saíram das mesquitas e foram às ruas, e a rebelião deixou de ser restrita a jovens e à classe média com acesso à internet e tomou conta da capital e de todas às outras grandes cidades egípcias: Suez, Alexandria, Port Said, Ismailia, Assiut e Sohag.
O governo reagiu duramente, jogando militares e tanques nas ruas, mas não adiantou. "O governo perdeu o controle e a situação degringolou", descreveu o embaixador, que serviu antes na Turquia e na Tunísia e está há nove anos e meio nos três países.
Os manifestantes usavam principalmente duas armas: pedras e fogo. No cairo, incendiaram a sede do partido do ditador Hosni Mubarak, um prédio de cerca de dez andares, próximo à Embaixada do Brasil. Ardeu durante horas sem que os bombeiros chegassem e agissem.
O embaixador diz que o ataque ao prédio explica um dos motivos da rebelião: a falta de canais reais de participação popular. O partido de Mubarak, há 30 anos no poder, conquistou cerca de 95% do Congresso em eleições cuja lisura é sempre questionada.
"Não deixaram uma válvula de escape para o povo", disse Melantonio. Ou seja: não há nem mesmo canais institucionais para que a população extravase a irritação com o governo, contra os preços altos, a falta de empregos e serviços básicos públicos, a opressão política. Só sobrou a rebelião nas ruas.
Perto de 50% dos 80 milhões de egípcios vivem abaixo da linha da miséria, com salários de até US$ 30 por mês, e estima-se que 40% sejam analfabetos.
Segundo o embaixador Cesário, não há ameaça à pequena comunidade brasileira, "que não passa de uma centena de pessoas". São professores, engenheiros, executivos de multinacionais e técnicos ou jogadores de futebol, todos com boa renda e morando em bairros até agora seguros.
Os turistas brasileiros no Egito somam cerca de 15 mil ao ano, mas divididos ao longo de todos os meses. Na sexta-feira, o embaixador não tinha informações sobre quantos estão no país neste momento e acrescentou que não havia nenhum plano para a retirada emergencial de brasileiros.
O Brasil é o maior exportador de carne bovina, frango e açúcar para o Egito e, só com esses três itens da pauta comercial, atinge US$ 800 milhões por ano. Além disso, o Mercosul e o Egito acabam de fechar um acordo de livre comércio em outubro do ano passado e vem aí a cúpula da América do Sul com países árabes, no dia 16, em Lima.
Por tudo isso, o governo brasileiro reagiu com cautela no início dos protestos, na terça-feira passada, alegando nos bastidores que o Egito tem um regime forte, o Exército mais potente daquela região depois do israelense e bastaria cortar as comunicações por celular e internet para esmagar os manifestantes. Concluía, assim, que o movimento não teria vida longa. Enganou-se.
Na sexta-feira, o ditador Mubarak já era obrigado a fazer pronunciamento pela televisão e trocar todo o seu governo. Mais ou menos na linha: vão-se os aneis e o gabinete, ficam os dedos e o seu mandato.
Brasília o temor compartilha agora com Estados Unidos e Europa o temor de que a crise se alastre por todo o mundo árabe. Começou com a queda do ditador da Tunísia, invadiu o Egito, chegou ao Iêmen e já sacode a Jordânia.
A diferença é que, enquanto a Tunísia é um lindo país de 10 milhões de habitantes no norte da África, pertinho da Europa, o Egito é um país poderoso, militarizado, o líder árabe. Além disso, dos 22 países da Liga Árabe, só dois mantêm relações com o vizinho Israel: justamente o Egito e a Jordânia. E Israel é o principal aliado norte-americano no Oriente Médio.
Washington já perdeu o Irã (de origem persa) há tempos e não pode correr o risco de perder agora o apoio do Egito e da Jordânia, principalmente para regimes religiosos extremistas.
A conclusão é que, se o mundo árabe está em chamas, o mundo todo está quente. E inseguro.
(*) Jornalista e colunista da Folha de São Paulo desde 1997.
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