Ignácio de Loyola Brandão para O Estado de S.Paulo
Quando entrei na Biblioteca Mário de Andrade, na terça-feira, dia 25, agora reformada pelo Carlos Augusto Calil (São Paulo merecia a restauração), reencontrei um pedaço de mim aos 18 anos. Lá em Araraquara, em 1954, o sonho de minha geração era vir a São Paulo, que festejava seu 4.º Centenário. O que eu queria conhecer? A Biblioteca, o Hotel Jaraguá, a Livraria Francesa, na Barão, a Cinemateca, o barzinho do Museu, o cine Jussara dos filmes franceses, o Marrocos com sua fonte, o Ibirapuera. Com um apetite voraz, tinha seguido o Festival de Cinema. Tão perto e tão longe. Ousei e escrevi uma carta à organização, recebi cartazes do festival, assinados por Alexandre Wollner e Geraldo Barros. Mal tinha ideia de que eles representavam o modernismo no design brasileiro. Os cartazes foram exibidos na Escola de Belas Artes de minha cidade. A escola quis ficar com eles, finquei pé, eram meus, um orgulho.
Quando fui embora da cidade, dobrei e guardei, não sei onde guardei. Onde estarão? Levei um tempão para voltar à cidade, só queria voltar vitorioso, seja lá o que isso significasse. É que tinha uma frase de Hemingway na cabeça: "A pior coisa para um homem é voltar derrotado para sua própria cidade". Anos mais tarde, ao assistir no Teatro Maria Della Costa a peça Doce Pássaro da Juventude, de Tennessee Williams, fiquei fascinado com o personagem principal, vivido por Mauro Mendonça, então jovem, magro e bonitão e casado com a lindíssima e sensual Rosamaria Murtinho, para inveja de todos. O sonho do personagem era voltar à cidade natal em um Cadillac e com uma estrela de Hollywood ao lado. Quis a mesma coisa e como estrela hesitei entre Eliane Lage, Tônia Carrero e Gilda Nery, todas do cinema, às quais eu misturava Nélia Paula, Margot Morel, Joana D"Arc, Rose Rondelli e Elvira Pagã, do teatro rebolado. Sonhos se adaptam às realidades locais.
Em setembro de 1954 vim a São Paulo para os Jogos Intercolegiais. Todas as grandes cidades do interior mandaram estudantes. Ficamos hospedados no Pacaembu, que ainda tinha concha acústica. No dia 7, houve um desfile de gala no estádio, fiquei na arquibancada ao lado de uma turma de Rio Claro. Uma das moças comia um sanduíche de alface e tomate, achei deslumbrante. Nunca tinha visto isso, nem podia saber que estava diante da comida natural que seria moda décadas depois. Sanduíche era pão com queijo, com presunto, mortadela ou salsicha.
Uma tarde, abandonei os jogos e fiz minha primeira incursão sozinho pela cidade desconhecida. Estava com 18 anos e até então sempre viera com meu pai, que ciceroneava os filhos por toda a parte. Jamais vi alguém tão apaixonado por São Paulo, era comovente. Decidido, corri ao primeiro sonho, a biblioteca celebrada por Antonio Candido, Paulo Emilio Salles Gomes, Sérgio Milliet. Entrei tímido, como se fosse catedral. Era. Fiquei sentado na circulante, extasiado. Aquele prédio inteiro repleto de livros. Quantos seriam? Invejava os que liam, estudavam, moravam aqui. Ainda frequentaria? Pedi Loira Dolicocefala, de Pitigrilli. Os títulos dele eram intrigantes. Alguém ainda o lê ou se lembra desse autor, tão cáustico? Foi lindo ver o livro chegar pelo elevadorzinho.
Estimulado pelo ar da Mário de Andrade, corri ao segundo ponto, o Parque do Ibirapuera, era o must (como se disse certa época), a sensação. Fazia menos de um mês que tinha sido inaugurado. Nunca tinha visto um parque tão grande, tão bonito, os lagos com pedalinhos, os prédios do Niemeyer, o paisagismo de Burle Marx, a grande marquise (que mais tarde seria inspiração para a cena final de meu romance Não Verás País Nenhum) e a exposição industrial. Não que a indústria me interessasse, mas queria ver o prédio, seguir a multidão, olhar tudo.
Ao subir uma rampa, fui bloqueado por um grupo fechado em torno de alguma coisa. Um acidente, alguém passando mal? Abri caminho e dei com um aparelho de televisão. Deslumbramento. Havia um em cada andar. Só São Paulo, mesmo! A tarde caía, eu olhava a telinha, via o que até então só tinha visto em filmes americanos. Aquilo era a televisão? Muito bem! Cinema eu sabia como funcionava, via a cabine de projeção e o foco de luz em busca da tela. Mas televisão? Não havia cabine, projetor, nada. Era a caixa, um fio, a tomada, a antena em cima, de tempos em tempos sincronizada por um senhor que vigiava e não deixava mexer no aparelho, nem se aproximar muito. Televisão, sim senhor! Ali à minha frente. Glória de um caipira. Valeu ter vindo a São Paulo, a cidade mais incrível do mundo, tinha de tudo.
Andei pela exposição, olhei máquinas, equipamentos, mas voltei à televisão. Vi cantores, bailados, uma comédia curta com Pagano Sobrinho, nos comerciais descobri as garotas-propaganda, estrelas de primeira grandeza. Como era variado, melhor do que o rádio. Quando chegaria a Araraquara? Quando saí do pavilhão industrial era noite, mas o Ibirapuera estava lotado e iluminado, alto-falantes transmitiam notícias e música, casais de namorados andavam de mãos dadas. Pensei em Costinha, de nome Maria Aparecida (irmã do Zé Maria, um colega de colégio), por quem era apaixonado e que nem olhava para mim. E se eu a trouxesse ao Ibirapuera? Como resistir a um passeio desses? Onde estará Costinha, 56 anos depois?
Fui caminhando para a saída, à procura do ponto de ônibus e ouvindo os alto-falantes. Naquele momento, meu sonho era um só: trabalhar naquele sistema de som e poder viver em São Paulo, vir ao Ibirapuera todos os dias. A cidade me parecia uma festa. Nessa tarde decidi, tinha de morar aqui. Três anos depois, estava em São Paulo, trabalhava em jornal e estava apaixonado por uma estrelinha de cinema, Marlene França, tão bonita. Lembro-me que no Parque Shangai (desaparecido) comprei um balão vermelho para ela. Onde está Marlene hoje?
(*) Contista, Romancista e Jornalista.
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