Hélio Schwartsman (*)
O brasileiro nunca deu muita bola para a meteorologia, que, nos países verdadeiramente temperados, chega a ser uma obsessão nacional. A diferença se explica. Por aqui, a previsão climática é quase monótona: há o tempo seco e o chuvoso, o período de calor escaldante e o suportável. A vida não muda radicalmente quer estejamos num ou noutro. Já nas nações de altas latitudes, a estação dita o ritmo de nossas existências: o que se pode fazer no inverno é muito diferente das atividades de verão, e isso afeta desde os esportes que podem ser praticados até os estados de espírito.
No período do frio, a vida se volta para ambientes internos, a luz solar escasseia, cada incursão ao mundo exterior exige preparativos, sendo, portanto, revestida de solene gravidade. Por contraste, o verão ganha uma ligeireza quase institucional: um autêntico "midwestern" norte-americano se vestirá de bermudas e camiseta em meados de setembro mesmo que a temperatura atinja 5ºC ao cair do dia. Afinal, ainda é verão.
Por aqui, são necessário eventos catastróficos como o da região serrana do Rio de Janeiro para nos fazer lembrar da importância do clima. É claro que a quantidade de chuva é apenas um dos ingredientes da tragédia. O bom Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) já havia observado que as consequências de desastres naturais são em larga medida determinadas pelos homens. Como escreveu o genebrino a respeito do grande terremoto de Lisboa (1755), não foi a natureza que, numa área relativamente exígua "reuniu 20 mil casas de seis ou sete andares". Ele vai ainda mais além e pergunta-se "quantos infelizes pereceram neste desastre, porque quiseram pegar, um suas roupas, outro, sua papelada, outro, seu dinheiro?".
Não sei se a Defesa Civil tem um patrono, mas, se não tem, deveria pegar logo Rousseau. Até onde sei, é ele que, com essas reflexões, inaugura a moderna abordagem sociológica desse tipo de evento. É claro que o fez num contexto um pouco diferente, que já explorei antes neste espaço. O bom Jean-Jacques disse o que disse em meio a uma disputa teológica. Ele se contrapunha a Voltaire (1694-1778), que, em seu "Poema sobre o Desastre de Lisboa", utilizara o sismo para introduzir o problema da teodiceia: se existe um Deus benevolente, onisciente e onipotente, como pode permitir o sofrimento de tantos inocentes? Rousseau, na ânsia de isentar a Providência de qualquer responsabilidade, preferiu lançar a culpa sobre os homens.
Deixemos, porém, o Criador de lado e nos concentremos na interação natureza-sociedade. Seria uma insanidade pretender, contra Rousseau, que erros na política de ocupação do solo e comportamentos temerários não são capazes de magnificar os efeitos de calamidades naturais. Mas é importante observar que só as chamamos de "naturais" porque há variáveis geológicas e atmosféricas envolvidas. O peso de cada qual é uma questão aberta --e com proporções que variam bastante conforme o evento.
De um modo geral, eu diria que, especialmente no Brasil, onde a meteorologia não goza de grande Ibope e onde a tradição acadêmica valoriza as chamadas forças históricas em detrimento de fatores humanos, geográficos e mesmo do bom e velho acaso, o clima acaba sendo um pouco menosprezado.
Existem, é claro, escolas alternativas. O melhor exemplo talvez seja o do geógrafo Jared Diamond, que, em seus livros "Armas, Germes e Aço" e "Colapso", coloca a geografia e o clima como explicações centrais para determinar surgimento, expansão e desaparecimento de civilizações.
Na mesma linha de pesquisa vão Raymond Fisman e Edward Miguel que, em "Economic Gangsters: Corruption, Violence, and the Poverty of Nations" (gângsteres econômicos: corrupção violência e a pobreza das nações), atribuem boa parte dos desastres da África aos caprichos do clima. Eles analisaram a relação entre secas e guerras civis e concluíram que o fator climático explica os conflitos até melhor do que as divisões étnicas e religiosas. Para esses economistas, uma queda de 5% no PIB, comum em vários países nos anos de seca, eleva em 50% (de 20% para 30%) o risco de ocorrer uma guerra civil nos 12 meses seguintes. Saindo da abstração dos números, para o sujeito que vive ali, cada vez que vem as chuvas falham, a chance de ocorrer um conflito no ano subsequente é de uma em três. E vale lembrar que a África é a região tropical do planeta com maior propensão a estiagens. É comum no continente que um país tenha de dois a três anos secos por década.
Fisman e Miguel também acharam correlações mais improváveis, como aquela entre a falta de chuvas e o maior número de mulheres assassinadas por bruxaria na Tanzânia. De novo, a deterioração das condições econômicas leva as famílias a sacrificar alguns de seus membros. A escolha acaba recaindo sobre as "bruxas", isto é, as duplamente vulneráveis: mulheres mais idosas. Nós, no conforto de nossos supermercados, já nos esquecemos de que, durante a maior parte de sua existência, os homens tiveram de apelar para infanticídios, parricídios, matricídios e vários outros "cídios" em momentos de extrema privação. Parte da humanidade ainda vive nessa era neolítica.
E essas ponderações sobre o clima nos levam à questão fundamental: de quem é a culpa pela tragédia? É a natureza/Deus ou as autoridades/cidadãos? Para responder a isso precisamos recorrer à ideia de percepção do risco, conceito onde se materializam as reações humanas diante das incertezas naturais.
E essa é uma disciplina na qual tiramos nota zero. Somos bons para fugir dos perigos que a natureza inscreveu em nossos genes: cobras, altura, plantas amargamente venenosas. Aí, a reação é imediata e nem precisamos ter certeza de que "aquela cobra" não é um simples graveto antes de sair correndo.
A questão é que esses perigos antigos são quase inexistentes nos ambientes urbanos em que vivemos hoje. Riscos modernos mais verossímeis são enchentes e outros cataclismos, acidentes automobilísticos, e venenos saborosos, como charutos e picanha. Não estamos programados para sair correndo cada vez que avistamos uma casa construída em morro nem para fugir de motocicletas. Pior ainda, corremos (e pagamos) para entrar numa churrascaria. É só através de operações intelectuais que tomamos ciência do perigo envolvido nessas situações. E, infelizmente, nem sempre reagimos a essas abstrações. Embora a cultura seja a outra via pela qual moldamos nosso comportamento, ela não é tão eficiente quanto os medos viscerais. O resultado é que ocupamos áreas de risco sem nem pestanejar. A pobreza é decerto um ingrediente a determinar quem habita onde, mas não é tudo. Mais de 90% da população norte-americana vive gostosamente em regiões onde o risco de grandes terremotos é de moderado a alto.
Um jeito de mudar essa equação seria multiplicar nossa expectativa de vida por 1 milhão. Para um ser humano que vivesse 70 milhões de anos, o ato de atravessar uma rua seria percebido como mais perigoso do que mergulhar num tanque cheio de tubarões brancos em jejum. O tempo é a chave quando pensamos em risco, isto é, em frequências relativas.
Não é de meu feitio defender autoridades públicas, mas o argumento das chuvas excepcionais não é tão estúpido. Se esperarmos o tempo necessário, é uma fatalidade aritmética que, num dado verão, o volume de água precipitada supere a capacidade da melhor engenharia de resistir a enchentes e sobrevenha uma catástrofe. Vale lembrar que, por definição, cada estação chuvosa tem uma chance em 500 de produzir a pior enchente dos últimos 500 anos. Ou uma em cem de produzir a cheia do século. Você escolhe.
Só o que podemos fazer é melhorar constantemente nossas defesas, para tentar reduzir o número de vítimas e estragos que essa "tempestade perfeita" é capaz de produzir. Nesse sentido, é mais do que legítimo que aproveitemos tragédias como a atual para pressionar as autoridades a tomar atitudes. Cobranças políticas, ainda que "injustas", são menos abstratas do que tabelas de sinistralidade. Tendem, portanto, a produzir resultados mais concretos.
(*) Bacharel em Filosofia e articulista da Folha de São Paulo
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