terça-feira, 20 de dezembro de 2011

O costume, esse imbatível

Do Blog Net 7 Mares [net7mares@gmail.com]

“O governo chinês luta contra as cusparadas dos seus cidadãos; tio Gates, em combater a disseminada prática de copiagem do seu Windows; e eu podia terminar a crônica aqui, vaticinando que ambos haverão de dar com a cara no chão nessa tentativa de alterar o costume”.

Há um inusitado ponto comum entre o império microsoftiano — se me permitem o neologismo — e o governo comunista neocapitalista chinês. Vejamo-lo:

Há relativo pouco tempo, o totalitário governo chinês decidiu, via decreto, enfrentar a mania que os chineses tem de escarrar em via pública, prática que é moda por lá. O povo chinês acha que cuspir a torto e a direito por onde passa faz algum tipo de bem. Já Bill Gates, o supremo mandatário do universo informático, tendo chegado à conclusão de que a proteção chave serial era inútil para impedir a copiagem do seu principal programa, decidiu implementar um mecanismo anti-cópias no Vista, que também resultou em vão. Criou, para o Seven, versão mais recente, barreira mais fechada contra cópias, e o que a gente vê, hoje, nos sites de downloads gratuitos são múltiplas ofertas de Seven "autenticado". O ponto comum entre o governo chinês e a Microsoft é a luta inútil contra o costume.

Não sei das penalidades que foram estabelecidas para os "transgressores" do decreto chinês, mas, a julgar que foram impostas por um governo mão-de-ferro, hão de ter sido penalidades pesadas. E, aí, pergunta-se: a lei chinesa emplacou? Resposta: não. E por que não? Porque não há lei capaz de dar fim a um costume. Evidente que cuspir na rua é, para nós, os ocidentais, uma prática abominável; mas o chinês não pensa assim.

O governo chino luta contra as cusparadas dos seus cidadãos; tio Gates, em combater a disseminada prática de copiagem do seu Windows; e eu podia terminar a crônica aqui, vaticinando que ambos haverão de dar com a cara no chão nessa tentativa de alterar o costume; mas como o tema desanda para conseqüências revolucionárias, acho que vale a pena alongar-me um pouco.


Em se tratando do segmento música, o costume de copiar arquivos de som já vem desde os tempos dos cartuchos, aqueles dispositivos que antecederam as fitas K-7. Certamente, por causa da má qualidade do som que saía nas cópias em K-7, ninguém da indústria fonográfica esquentou muito com a prática, e esta veio se prolongando através do tempo. Pois bem... Com o advento da Internet e do MP3, a prática, alicerçada no fator tempo, virou costume, e, aí, tornou-se imbatível. Por esse caminho, logo apareceu o Napster, o primeiro programa on-line de troca de arquivos de som. A lei caiu em cima e, depois de longa luta judicial, deram fim ao programa. Em seguida, veio o Kazaa, que acabou tendo o mesmo fim. Não demorou muito, vieram o Shareaza, o eDonkey2000, o Piollet, o Emule... todos, envolvidos no mesmo “crime” que era praticado pelo Napster e Kazaa, e ninguém mais falou em processo judicial. Neste aspecto, o costume de copiar arquivos MP3 virou uma cabeça de Medusa: a cada serpente que é removida do couro cabeludo, nascem outras, multiplicadas.

Hoje, ninguém mais abre programa P2P para buscar músicas. Basta entrar no Youtube, procurar a música que quiser e, com o gratuito programa aTube Catcher, baixá-la à sua coleção de MP3. No 4Shared, é mais fácil, porque não precisa de programa algum auxiliar. É só clicar em "Download", aguardar 20 segundos e... "Voilà".

Um outro aspecto também salta aos olhos e merece ser apreciado: o dos benefícios e malefícios, que, de modo geral, estão presentes e qualquer costume. No caso das músicas, antes do advento daqueles cartuchos, tínhamos (e ainda temos), por um lado, artistas a ganharem rios de dinheiro com a produção de discos, enquanto que, pelo lado oposto, os consumidores tinham que se contentar com duas ou três músicas de qualidade, vez que o resto do CD é composto de puro lixo. O povo, por seguidas décadas, teve que engolir essa salada indigesta que lhe era oferecida pelos poderosos da indústria fonográfica no danoso costume de vender dez frutas podres sob duas sadias . Nesse quadro, uns poucos — artistas e donos de gravadoras — eram os beneficiados, enquanto milhões eram sacaneados, configurando essa moeda perversa, onde, numa das faces, poucos ganham muito, e, na oposta, muitos, pagando caro, ganham quase nada.

Pois bem; com a chegada do MP3 e das facilidades vistas acima, essa história mudou, vez que o povo internauta, agora, pode montar o seu álbum de músicas só com o filé e sem gastar um centavo. E os artistas? Não tendo mais ninguém a comprar as suas bolachas, como é que ficarão? Terão que sair mundo afora, distribuindo gratuitamente os seus discos, tendo o cuidado de colocar, nestes, produções caprichadas, para, a partir da propaganda, trazer o povo às suas apresentações ao vivo. Por aí, acaba aquele enche-lingüiça que ainda temos nos CDs, onde, numa coletânea de 12 músicas, só uma ou duas prestam. Eis aí a suprema vingança do costume.

Mas... e os artistas? Vão viver do quê? Vão viver do que conseguirem auferir nas apresentações ao vivo. Voltarão, portanto, aos tempos de antanho, quando, não havendo tecnologia de gravação, ganhavam a vida, cantando nas rádios e nos shows. Antes do MP3, faziam duas composições, misturavam-nas com generosas porções de porcarias e ganhavam fortunas; agora, se não capricharem nos discos-brindes que serão distribuídos de graça, ninguém irá aos seus shows.

Enfim, a despeito de leis reguladoras ou decretos, os chineses seguirão com as suas cusparadas públicas; e o mundo continuará a escarrar sobre o suposto direito daqueles que querem vender a sua arte, estabelecendo limites ao comprador, quando a tradição determina que quem compra algo tem o direito de fazer o que quiser do produto comprado. Azar de quem vendeu barato.

De resto, se tudo isso não basta para mostrar que o hábito da cópia é imbatível, vai mais uma: já existe na legislação brasileira a jurisprudência do costume (veja no Google), e o dicionário do Houaiss sacramenta-o na definição clara: "jurisprudência que se fundamenta na prática, no uso em detrimento da lei escrita". Ora! Faz pleno sentido a existência dessa figura jurídica, vez que a lei é feita, baseada no costume. Pode-se mesmo dizer que, por conclusão natural, a lei ideal é aquela que é feita para defender o costume, e não para combatê-lo. O costume, portanto, prevalece sobre a lei. E mais: se formos falar de conduta ética, temos que tomar, por base, que ético é o que traz benefícios à maioria, e não a uma minoria, cujos membros, até há pouco tempo, podiam, com duas músicas nas paradas de sucessos, encomendar o iate para os finais de semana.

E, para fechar a crônica, digo que o Chico Buarque, quando nos apareceu com um "Vai trabalhar, vagabundo!" naquela sua conhecida canção, estava já pressagiando, no refrão, alguma desgraça contra a sua classe profissional. Rotulou a si mesmo no vocativo do seu refrão, e, até hoje, nem desconfia que, na sua canção, foi autor e protagonista.

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