quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Surpresas

Bellini Tavares de Lima Neto (*) 

Ao que todo indica, instalou-se a cizânia no Brasil. 
O país se dividiu entre norte-nordeste e sul-sudeste e têm surgido inúmeras manifestações sobre o assunto. Alguns são incisivos em suas teses de que realmente isto aqui deveria ser dividido ao meio. Outros se posicionam de forma contrária e tacham de puro preconceito essa grita do sul contra o nordeste e vice-versa. E todos parecem surpresos com isso. 

Pois eu estou realmente surpreso. Mas estou surpreso com a aparente surpresa que tem tomado conta das pessoas. Quem é que não conhece a história do rei que saiu do palácio sem roupa e ninguém se atreveu a reconhecer que ele estava nu, exceto um garotinho, ainda não contaminado pelo vírus da conveniência social, que soltou a frase destinada à consagração: “Mas o rei está nu!” Ora, esse tratamento hostil entre sul e nordeste é tão antigo quanto a própria sociedade brasileira. Da mesma forma que bancos e negros se tratam com hostilidade. E, mais recentemente, entraram na dança os adeptos de preferenciais sexuais pouco ortodoxas. Em quase todos os segmentos sociais deste país existe essa hostilidade. E, talvez até recentemente, um dos grandes pontos dessa efervescência tem sido o futebol. A intolerância é uma marca registrada do comportamento da população brasileira. O brasileiro é cordial até que algo não saia exatamente como deseja. A partir daí, adeus cordialidade. 
Entra em cena a hostilidade. Isso é alguma novidade? 

A disputa entre sul e nordeste existe há décadas, séculos talvez. 
É ainda mais forte que a desavença entre ricos e pobres. As classes pobres brasileiras desenvolveram um tipo bastante característico de raciocínio. Via de regra, elas não querem melhorar e sim, desejam que os ricos sejam punidos. E, de onde será que isso vem? A meu ver isso é o produto exclusivo da manipulação que, sobretudo a classe política, exerce desde sempre. Em toda campanha eleitoral as manifestações são sempre as mesmas. Pessoas que jamais entraram em um restaurante popular são flagradas comendo a “comida deles”. E “nós”, acostumados ao colonialismo cultural, à submissão e à subserviência em troca da sobrevivência, nos mostramos extremamente honrados e felizes. Mas, junto com a falsa proximidade, vem, invariavelmente, o discurso populista de que temos que combater a classe “deles”. Para que não me flagrem comendo caviar, como uma buchada de bode e digo o quanto “eles” são maus e precisam ser punidos. Funciona que é uma beleza. 

Essa forma de manipulação não é nova. Existe há décadas. 
O “Pai dos pobres” não é criação deste século. Vem da primeira metade do século passado. O que acontece é que, de um momento em diante, se tornou institucional. 
Vamos enfatizar essa dicotomia e tirar proveito dela. Vamos incitar com força a rivalidade entre “nós e eles”, mesmo que “nós”, a rigor, não façamos parte dessa categoria de “nós”. E mesmo que “eles” não sejam tão “eles” assim. O que vamos conseguir com isso? 
Os mesmos resultados de sempre, o afago artificial no ego combalido das classes desfavorecidas e sua gratidão subserviente. E assim vamos caminhando com nossos bastões e nossos bordões. 

Da mesma forma que os dirigentes de futebol se valem da rivalidade clubística que eles mesmos desenvolveram e tiram partido ela, a política tem adotado procedimento exatamente igual. Tem destilado o ódio entre as classes e enquanto as classes se digladiam, o grupo fechado se beneficia de tudo. 

Seria muito bom refletir sobre um dado: desde os mais remotos tempos as classes ditas dominantes exerceram um tipo de escravidão sobre imensa parcela da população e a manteve no “status” em que sempre esteve. Ninguém ignora isso. E esse comportamento nos trouxe ao patamar de subdesenvolvimento que atingimos hoje. 
Mas, inverter os lados e criar, agora, uma classe de explorados que vai dar o troco aos exploradores só vai nos manter no mesmo patamar. 
Ou, o que é pior, vai nos afundar ainda mais. 

É óbvio que o Nordeste é uma região mais subdesenvolvida do que o resto do país. 
E manter essa região nessa situação tem servido muito bem aos propósitos de um contingente de pessoas, seja na política, seja no segmento econômico-financeiro. 
O Nordeste não se desenvolve porque não há interesse nisso e nunca houve. 
As secas são tão antigas quanto o próprio país e jamais foram controladas porque nunca houve interesse nisso. Já houve até organismos estatais (SUDENE e SUDAM) com o propósito formal de desenvolver aquelas regiões e, no entanto, só se prestaram à exploração econômica em beneficio de alguns. 

Estimular o litígio entre as regiões só vai fazer com que a situação se prolongue eternamente, situação que interessa rigorosamente apenas e tão somente aos de sempre. Mas, demonstrar essa surpresa de vestais diante de algo que acontece há séculos me parece inteiramente fora de propósito. Esta terra só vai começar a se mover em alguma direção quanto deixarmos de lado esse falso pudor e começarmos a olhar para os nossos pés de pavão, nossas mazelas que são muitas, abandonarmos esse patriotismo hipócrita e de ocasião. A cizânia existe desde sempre e vai continuar existindo enquanto não nos conscientizarmos disso. 

O resto é continuar dando milho aos pombos e pérolas aos porcos. 

(*) Advogado, avô e morador em São Bernardo do Campo (SP)

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