Meu pai, antigo vendedor-propagandista de um laboratório farmacêutico, contava de um dono de farmácia no interior de São Paulo que primava pela grossura. Era desses tipos que parecem dormir com as pernas encolhidas para, assim que acordarem, desferir o primeiro coice. O homenzinho tinha um respeitável repertório de más-criações e uma delas era desrespeitar os vendedores-propagandistas. Bastava que um deles chegasse ao estabelecimento e depositasse a pasta sobre o balcão para que o grosseirão jogasse a pobre no chão e emendasse com um “já falei que não quero pasta de propagandista no meu balcão”. Talvez por sorte ou dever de oficio, nunca houve quem lhe pespegasse um trompaço ao pé dos ouvidos para que aquele zumbido ficasse por ali algum tempo a lembrá-lo de que respeito é bom e tem excelentes propriedades odontológicas, vale dizer, conserva os dentes. Vendedores-propagandistas desses que viajavam pelo interior do país acabavam se tornando conhecidos entre si e dos farmacêuticos e médicos. Eram uma espécie de comunidade. Pena que o tal farmacêutico, apegado aos seus destemperos, ignorasse isso. Pois um dia chegou ao seu estabelecimento um individuo portando uma pastinha, dessas que a classe costuma usar. Entrou, depositou a dita sobre o balcão, cumprimentou o relinchante e, em troca, recebeu o que todos já estavam cansados de saber: a pastinha no chão e a explicação sobre ela. O sujeito, então, entre consternado, constrangido e acometido do mais puro ódio de que poderia ser capaz um individuo, abaixou-se, apanhou sua pasta e informou, com aquela calma própria dos assassinos em série: “eu não sou propagandista, sou fiscal do Imposto de Renda”. Dizia o meu velho que o sujeito se arranchou no estabelecimento do tal por uns três meses, mais ou menos.
História semelhante campeia o folclore dos advogados versando sobre um juiz de direito e um profissional da lei. Final de tarde, fórum semi-vazio (só pode ter sido em alguma cidadezinha muito pacata), funcionários dispersos, entra na sala de Sua Excelência um advogado e sua indefectível pastinha.. Entra com aquela demonstração de respeito que os magistrados exigem e alguns até merecem. Cumprimenta, retira de sua pasta um documento, deposita a pasta num canto da mesa do magistrado e, muito humildemente, solicita-lhe uma providência qualquer. O juiz, então, empurra a pasta do advogado e joga no chão, mais ou menos com as mesmas palavras de seu colega de estrebaria do caso lá de cima. O causídico, então, com toda a calma, se dirige até a porta, constata que não há ninguém nas cercanias, fecha delicadamente a porta, volta à mesa de Sua Excelência e, meio entre dentes, bem baixinho, quase sussurra: “seu f.d.p., levanta daí e pega a minha pasta se não eu te arrebento a cara aqui e agora mesmo”. Pego de surpresa diante da crua realidade, o ilustre magistrado teria se levantado e, com a cortesia que o momento impunha, recolhido a pasta e colocado de volta no canto da mesa. No que o causídico volta á porta, abre, retorna á mesa e no mesmo tom respeitoso e humilde, volta a pedir a providência inicial.
Não há quem não se sinta de alma lavada com situações assim em que um abusado se dá mal e leva o devido troco. É assim no trânsito, na fila do banco ou em qualquer outra situação em que nunca faltam os desaforados, os que se prevalecem de uma circunstância qualquer. E é tanto assim que nunca falta público para os filmes de mocinho e bandido, para as novelas e tudo mais. O que fica, mesmo, difícil de compreender é a contradição que existe nisso tudo. Afinal, se é tão gratificante ver o bandido se dar mal, porque é que ainda existem bandidos? Se é tão bom ver um desses malfeitores encontrando a justiça pela frente, sofrendo as conseqüências de seus malfeitos, porque é que ainda existe tanto malfeitor por aí, a maioria circulando impunemente? Se há tanta gente que gostaria de vê-los desaparecer, como é que se reproduzem tanto a ponto de a raça não extinguir feito o mico-leão, a ararinha azul e outras preciosidades? Não é estranho? E mais. Se por um lado quase todo mundo se sente de alma lavada quando um tranca-ruas desses leva a devida carraspana, de outro é de impressionar a facilidade com que esse mesmo “quase todo mundo” assume exatamente a mesma posição se as circunstâncias permitirem. Não é preciso fazer nenhum grande esforço para se perceber isso. Se aparecer a chance, o indignado se bandeia para os lados do indigno sem fazer careta. Afinal, venceu o provérbio “a ocasião faz o ladrão?”
Por que será que é assim? Será que a reação contra os destemperados, os opressores, os desrespeitosos tem alguma raiz dentro dos indignados ou, no fundo, é apenas uma sensação de revolta por não conseguir fazer o mesmo, seja por falta de chance, seja por falta de coragem? O que, na verdade, incomoda: a atitude do opressor ou o fato de que é ele e não eu, quem está com o rebenque na mão? Não sei e, a esta altura do meu campeonato particular, tenho até medo que me digam. E se eu descobrir que, bem lá no fundo de mim mesmo, eu sempre torci pelo bandido e só fique feliz com o soco que ele leva no final porque nunca tive coragem de fazer aquelas maldades todas? E sabem mais? A cada eleição que assisto, mais fico desconfiado de que, no fundo, no fundo, ninguém torce pelo mocinho, não.
(*) Advogado , morador em S. Bernardo do Campo (SPO).
Escreve para o site O Dia Nosso De Cada Dia - http:
blcon.wordpress.com.
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