domingo, 7 de outubro de 2012

O Mensalão e o ex-presidente

Mensalão: votos de ministros ao condenar Dirceu forneceram mais elementos para envolver Lula no escândalo 
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Ricardo Setti (*)  

Amigas e amigos do blog, não sei se vocês notaram, mas a histórica sessão do Supremo Tribunal Federal de ontem, quinta, que começou a condenar o ex-chefe da Casa Civil do lulalato José Dirceu pelo crime de corrupção ativa recolheu uma série de manifestações de ministros da Corte que, embora a respeito do ex-deputado, serviriam quase como uma luva para condenar… Lula, se estivesse incluído no processo. 

Ou servirá, se o procurador-geral da República, terminado o julgamento dos 38 atuais réus, recolher, de todo o oceano de provas e evidências trazidas à tona, adotar a corajosa — mas improvável — decisão de iniciar um inquérito sobre o envolvimento do ex-presidente na maracutaia. 

Vejam bem: conforme ressaltaram os jornalistas Laryssa Borges e Gabriel Castro na ampla reportagem de ontem sobre o tema, o site de VEJA mostrou que provas indiciárias, experiência de vida e a longa militância política de Dirceu foram utilizadas para formar a convicção em três dos quatro magistrados que consideraram o ex-chefe da Casa Civil como o grande corruptor do esquema do mensalão. 

Os ministros Joaquim Barbosa, Rosa Weber e Luiz Fux deixaram claro que chega a ser “fantasiosa” a tese de que o então braço direito de Lula se manteve alheio à engrenagem de corrupção montada por Delúbio Soares e pelo publicitário Marcos Valério. 

Os três, lembrou a reportagem, foram categóricos ao afirmar não acreditarem na inocência do ex-ministro e disseram que coube ao então chefe da Casa Civil coordenar cada ato dos integrantes do comando do PT José Genoino (presidente) e Delúbio Soares (tesoureiro) para liberação da dinheirama, proveniente dos cofres públicos, destinada a comprar o apoio de deputados de outros partidos. 

Com um voto contundente em favor das provas indiciárias, o ministro Luiz Fux demonstrou que elementos de dedução e até a experiência de vida permitem concluir não ser possível que Delúbio Soares tenha agido sozinho em todo o esquema e que José Dirceu estivesse alheio a tudo. “Quando os indícios encontram ressonância na prova dos autos, adquirem status de prova tão robusta que servem para o decreto condenatório, indícios e presunções podem autorizar o juízo da culpa do agente”, disse. 


“Pelas reuniões a que compareceu e pelos depoimentos que foram prestados, esse denunciado (José Dirceu) figura como articulador político desse caso penal, até pela sua posição de proeminência no partido e por sua posição de destaque no governo”, declarou o ministro. 

Já o ministro Gilmar Mendes apontou a existência de uma contradição no voto do revisor, Ricardo Lewandowski, que condenou deputados corruptos e se limitou a apontar, como corruptor, somente Delúbio Soares. 

O ministro Marco Aurélio, de sua parte, também rejeitou, em comentário, a tese do revisor de que Delúbio era senhor de todo o esquema criminoso, não tendo de se reportar a nenhum grão-petista. “Vossa Excelência imagina que um tesoureiro de partido político teria essa autonomia?”, indagou. 

A ministra Rosa Weber seguiu na mesma linha, apresentando de forma sucinta as acusações que pesam contra Dirceu e Genoino. “Não é possível acreditar que Delúbio sozinho tenha comprometido o PT com dívidas da ordem de 55 milhões de reais e repassado metade disso a partidos da base aliada”, fuzilou ela, ao condenar a dupla. 

Mas a ministra lançou mão de mais do que a lógica dedutiva para condenar Genoino e Dirceu. Ao citar o então presidente do PT, ela lembrou sua participação decisiva na amarração dos acordos políticos e financeiros com partidos aliados do governo petista. 

Quando tratou de Dirceu, mencionou o papel central do então ministro gestão do PT e do governo, lembrou os depoimentos contrários ao ex-ministro e citou fatos. “As reuniões com dirigentes do Banco Rural, os vários indícios da ligação próxima de José Dirceu com Marcos Valério, ilustrada pelos favores prestados à ex-esposa do acusado e a viagem de Marcos Valério, Rogério Tolentino e Emerson Palmieri [a Lisboa] para a obtenção de recursos ilegais da Portugal Telecom para o PT e o PTB, apenas conformam a minha convicção e fecham o quebra-cabeças”. 

O relator Joaquim Barbosa detalhou a distribuição de tarefas na organização criminosa, afirmando que Dirceu comandou o esquema e ofereceu às instituições bancárias garantias de favores em troca dos repasses para o valerioduto. “Dirceu era o negociador da obtenção de recursos utilizados no esquema de compra de apoio político, que dependia também de sua atuação na Casa Civil”, disse. “Os pagamentos efetuados por Delúbio Soares e Marcos Valério aos parlamentares com os quais Dirceu mantinha reuniões frequentes o colocam em posição central, posição de organização e liderança da prática criminosa, como mandante das promessas e pagamentos das vantagens indevidas aos parlamentares que viessem a atender propostas de seus interesses”. 

Pois bem, vamos por partes: 

1. As provas indiciárias, experiência de vida e a longa militância política se aplicam, igualmente, a Lula. Se, como diz a reportagem com base nos votos e declarações dos ministros, Dirceu não podia estar alheio ao que se passava, como poderia Lula? “Tudo o que fiz era do conhecimento do presidente”, disse certa vez, em frase histórica, o próprio Dirceu, quando tinha certeza da impunidade que, agora, vê esvair-se. 

2. Se Joaquim Barbosa, Luiz Fux e Rosa Weber consideraram que chega a ser fantasiosa a tese de que Dirceu se manteve alheio ao funcionamento da engrenagem criminosa, por que não considerar igualmente fantasiosa a tese de que LULA nada sabia do que se passava a poucos metros de seu gabinete? 
Lula, que sempre esteve no centro de todas as ações que conduziu desde o velho Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, que formatou o PT com suas próprias mãos, que sempre se meteu e se mete em detalhes de escaramuças políticas a ponto de escolher candidatos a cargos municipais passando por cima dos órgãos partidários — este Lula centralizador e onisciente iria ignorar por inteiro justamente um esquema montado por seu braço direito? 

3. Se, conforme voto do ministro Fux, “esse denunciado (José Dirceu) figura como articulador político desse caso penal, até pela sua posição de proeminência no partido e por sua posição de destaque no governo”, imaginemos então Lula — cuja proeminência era evidentemente muito maior do que a de Dirceu, e a quem Dirceu servia! 

4. Quando a ministra Rosa Weber ressaltou o “papel central” de Dirceu na amarração de acordos com partidos aliados ao PT — que incluiriam o pagamento a deputados –, deixou de referir-se, naturalmente, a Lula, pela excelente razão de que ele não consta da peça acusatória do Ministério Público. 
Mas a quem serviam os acordos com partidos aliados? A Dirceu? Por acaso ele era quem governava? Ele é quem necessitava de maioria folgada na Câmara? Quem era seu chefe? 

5. Ao afirmar, taxativamente, em seu voto condenatório, que Dirceu foi “o mandante das promessas e pagamentos das vantagens indevidas aos parlamentares que viessem a atender propostas de seus interesses”, o ministro Joaquim Barbosa fez a responsabilidade pelas bandalheiras baterem na ante-sala presidencial. Não foi além até porque não poderia julgar o que não consta do processo mas, de novo, se impõe a pergunta: os “interesses” de Dirceu — que não era presidente — serviam a quem? 

Aí voltamos à tese do advogado do ex-deputado Roberto Jefferson, Luiz Francisco Barbosa, já objeto de comentários em post aqui publicado no começo de agosto. 
Na defesa de Jefferson, ele argumentou que ministros denunciados, a começar pelo então chefe da Casa Civil, José Dirceu, eram apenas executores do mensalão ou “braços operacionais” de Lula no esquema porque, afinal, ”não se pode afirmar que o presidente Lula fosse um pateta, um deficiente, que sob suas barbas estivessem acontecendo essas tenebrosas transações. Tudo acontecendo sob suas barbas… e nada?” 

Para o advogado, “Lula é safo, é doutor honoris causa e, não só sabia, como ordenou o desencadeamento de tudo isso que deu razão à ação penal. Sim, ele ordenou. Aqueles ministros eram apenas executivos dele”. 

Pois bem, volto a dizer, como então escrevi: o advogado tem razão! (Ele solicitou ao Supremo a inclusão de Lula como réu apenas para fazer barulho, porque sabia que isso não era possível: se o Ministério Público, titular da ação penal pública, não denunciou o ex-presidente, o Supremo não tem poderes para fazê-lo réu). 

Lula deveria estar no banco dos réus! 

Relembro, então, que vem de Seneca, na Roma antiga, o princípio do cui prodest: em latim, a quem aproveita o crime? Lucius Annaes Seneca, o filósofo Sêneca (4 a.C-65 d.C), foi também um grande advogado. É dele a frase, em sua versão da tragédia Medeia: Cui prodest scelus, is fecit. Ou “a quem aproveita o crime, esse o cometeu.” 

Isso, amigas e amigos do blog, é princípoio mulsissecular. Até eu o conheço e estudei. Aprendi nas salas de aula do Curso de Direito da Universidade de Brasília, com os professores Roberto Lyra Filho e Luiz Vicente Cernicchiaro, então juiz criminal — e mais tarde ministro do Superior Tribunal de Justiça. 

Sendo assim, pergunto e repergunto o que expus acima: por que raios José Dirceu, apontado pelo Ministério Público como o “chefe da quadrilha” do mensalão, montaria um esquema de corrupção para cooptar deputados sem que isso aproveitasse ao governo Lula, a quem servia? 

Dirceu armaria o mensalão para quê? Para ele? Com que objetivo? Se, como lembrou o advogado de Jefferson, só quem pode no Executivo enviar projetos ao Congresso – e, ali, fazer sua base parlamentar aprová-los – é o presidente da República? Dirceu quereria uma base de apoio folgada para quê? Ou devo dizer — para quem? Aí está a chave da questão. 

Nesse ponto, torna-se irresistível relembrar ainda uma avez o inacreditável discurso em que Lula, em agosto de 2005, acabrunhado e pálido, pede desculpas à nação. E se diz “traído”. 

Se ele naquela ocasião abrisse o jogo, dissesse o porquê das desculpasse e apontasse quem o traiu – suponhamos que fosse Dirceu –, eu não estaria escrevendo este post. 
Mas isso não aconteceu, como sabemos. Ficou a situação kafkiana de um presidente da República pedindo desculpas ao país por algo que ocorreu de muito feio e grave — e mais tarde, já fora do cargo, esquecer o discurso e dizer que o mensalão foi uma “tentativa de golpe” e uma “invenção”. 

Por que teria pedido desculpas, se nada se passara? 
E a situação kafkiana continuou, com o presidente de então acusando alguém ou alguns de algo gravíssimo – traição – sem, contudo, jamais identificá-los. 

Fica claro, hoje, que o discurso não passou de manobra para acalmar a crescente indignação na sociedade e serenar os ânimos crescentes de parlamentares que pensavam no impeachment de Lula. Algo que a oposição, inclusive o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, apressou-se a refrear, diante da popularidade do presidente-operário, mesmo em meio ao escândalo, e do que se considerou, então, o risco de uma seríssima crise institucional. 

Vejam bem, não estou chamando Lula de ladrão, nem dizendo que ele é culpado de coisa alguma. 
Estou achando, sim, correta a tese do advogado de Jefferson de que Lula deveria estar sendo julgado, deveria estar sentadinho no banco dos réus, junto a Dirceu, Delúbio, Genoino e Marcos Valério. 

Votos e comentários de ministros do Supremo ao longo do processo, e especialmente na sessão de ontem, sexta, trouxeram elementos para reforçar essa tese. 
Se o procurador-geral da República terá coragem para solicitar uma investigação sobre o papel de Lula no embróglio para, em seguida, iniciar ação penal contra ele é outra história. 

Mas deveria.

(*) Jornalista é colunista da Revista Veja 

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