Dom Odilo P. Scherer (*) para O Estado de S.Paulo
No dia 11 de outubro de 1962, o papa João XXIII abria de modo solene do Concílio Ecumênico Vaticano II. No dia 11 de outubro deste ano, Bento XVI abrirá as comemorações do cinquentenário desse Concílio, que foi o evento mais marcante da Igreja Católica no século 20 e um dos mais importantes de toda a sua história, quase bimilenar.
No Concílio Ecumênico - reunião dos bispos da Igreja Católica inteira com o papa - são definidas as questões fundamentais da vida da Igreja. Sua referência e sua imagem são sempre a assembleia apostólica de Jerusalém, ainda no início do cristianismo, quando os apóstolos se reuniram para decidir sobre uma questão posta por Paulo e Barnabé, destacados missionários entre os povos pagãos (cf. Atos dos Apóstolos, 15). O que se decide no Concílio Ecumênico vale para toda a Igreja, ali representada pelos seus responsáveis maiores. Ao longo da História, os Concílios Ecumênicos foram 21, realizados, sobretudo, nos primeiros séculos do cristianismo; nos últimos 500 anos foram celebrados apenas três: o de Trento, no século 16; o Vaticano I, no século 19, e o Vaticano II, no século 20.
Que questões, tão importantes, teriam motivado João XXIII a convocar, de maneira surpreendente, no dia 25 de janeiro de 1959, um Concílio da Igreja Católica? Pio XI e Pio XII, seus predecessores imediatos, também tiveram essa ideia e até mandaram fazer estudos com vista à convocação de um novo Concílio. No entanto, para estupor dos cardeais que o rodeavam, foi justamente o papa Angelo Giuseppe Roncalli, eleito com 78 anos de idade, ainda nos primeiros meses de seu pontificado, que o levou a efeito.
É importante situar essa decisão. O mundo ainda se recuperava da catastrófica 2.ª Guerra Mundial; sob o impulso da Organização das Nações Unidas (ONU), coisas novas iam aparecendo, como a cooperação internacional para o desenvolvimento dos povos e um novo surto de crescimento econômico, sobretudo no Hemisfério Norte; nações africanas iam ficando independentes... Ao mesmo tempo, surgiam tensões e conflitos locais, a pobreza dos países periféricos ficava mais evidente e novos sistemas de dependência se configuravam entre os países. Preocupação maior, porém, era a guerra fria, que contrapunha de maneira cada vez mais ríspida os dois blocos dominantes: o capitalista, liderado pelos Estados Unidos, e o socialista, liderado pela União Soviética. A estabilidade da paz e os avanços no respeito à dignidade humana, conseguidos ao preço de muita dor, sangue e ódio, estavam novamente ameaçados.
João XXIII queria que a Igreja e os católicos fizessem a sua parte, para melhor colaborarem com os esforços de toda a comunidade humana para assegurar ao mundo paz verdadeira e, ao homem, o desenvolvimento digno. Quis uma Igreja em diálogo com o mundo, atenta aos tempos novos, com seus desafios, oportunidades e problemas. Formado em História e fino diplomata, Roncalli tinha uma percepção aguda dos problemas da humanidade e já trazia no coração a encíclica Pacem in Terris (sobre a paz entre todos os povos da Terra), que publicaria no dia 11 de abril de 1963, pouco antes de falecer; queria que, em todo o mundo, a presença e a participação efetiva dos cristãos na vida da sociedade ajudassem os povos a encontrarem os rumos do convívio digno, justo, respeitoso e pacífico.
Essa mesma preocupação, depois, foi expressa de modo eloquente na Constituição Pastoral Gaudium et Spes (As alegrias e as esperanças...), um dos documentos mais importantes do Concílio, aprovado em sua última sessão, em 1965. O papa Paulo VI, o grande sucessor de João XXIII, logo em seguida, em 1967, escreveu a encíclica Populorum Progressio (Sobre o desenvolvimento dos povos...), tratando novamente do que seria necessário para um verdadeiro desenvolvimento, sobretudo a partir das relações entre países ricos e pobres. A recente encíclica de Bento XVI Caritas in Veritate (A caridade na verdade...) vai nessa mesma linha de preocupações, agora no contexto do início do século 21.
Mas João XXIII olhava para a situação da própria Igreja e queria que o Concílio a levasse a uma profunda renovação, ao crescimento da fé católica, a aprofundar a sua autocompreensão, como povo de batizados, no qual todos têm a sua parte na missão recebida de Cristo. O Concílio deveria promover a renovação das normas da vida e das organizações eclesiais, adequar aos novos tempos a liturgia, a formação do clero, a ação missionária, a sua postura diante das outras Igrejas cristãs e também das religiões não cristãs. Os conceitos de renovação, diálogo e participação são fundamentais para a compreensão do Concílio Vaticano II.
Esse Concílio teve a participação de mais de 2.500 bispos, em quatro sessões, ao longo de quatro anos. Produziu 16 documentos sobre vários assuntos e contou com a liderança de dois papas: João XXIII, que faleceu após a primeira sessão, e Paulo VI. Produziu uma transformação sem precedentes na Igreja e mudou de maneira evidente a sua face, sem, no entanto, mudar sua identidade e sua missão.
Decorrido meio século desde aquela memorável assembleia, a Igreja põe-se agora a avaliar o caminho já percorrido. Os frutos, certamente, foram e estão sendo imensos. Houve acertos e erros na interpretação do Concílio e os papas desse período tiveram sempre o cuidado de indicar à Igreja o caminho da reta aplicação das decisões conciliares.
Ainda como jovem teólogo, Joseph Ratzinger acompanhou, na condição de perito, o seu bispo, o cardeal de Munique, nos trabalhos conciliares. Hoje, nas responsabilidades de papa, Bento XVI tem repetido, com João Paulo II, que o Concílio não perdeu a sua atualidade e continua, qual bússola, a indicar, de maneira segura, os rumos para a Igreja no século 21.
(*) Cardeal-Arcebispo de São Paulo
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