Alfredo Sirkis (*)
Não nos coloco no mesmo plano dos que suprimiram a liberdade, perseguiram centenas de milhares por motivos políticos durante mais de duas décadas, torturaram sistematicamente e fizeram desaparecer resistentes. Os que transformaram instituições militares em máquinas de repressão, monopolizaram o poder, impuseram a censura, liquidaram as eleições e promoveram um modelo de crescimento injusto e concentrador de renda cujas sequelas persistem. Mas sustento que os nossos erros, suas consequências e tudo o que resultou da nossa ideologia de então, nos países onde chegou ao poder, são discussão legítima na Comissão da Verdade.
Não há muita serventia cívica em ficar repisando o que já se sabe há tanto tempo: que houve torturas e execuções, com desaparecimentos autorizados pela cadeia de comando daquele regime. Não é mistério quem as praticou.
A Argentina e o Chile decidiram julgar alguns dos seus torturadores e carrascos. Por outro lado, o Chile foi forçado a manter Augusto Pinochet, o ditador-comandante, à frente do Exército em toda a primeira fase de sua democracia. Outros países, como a Espanha pós-franquista e a África do Sul, optaram pelo caminho de não julgá-los. A África do Sul, em que pese a barbárie do apartheid, optou por uma Comissão da Verdade didática, catártica, com o arcebispo Desmond Tutu.
Com todo o respeito a quem sofreu o que eu não sofri - escapei da prisão e da tortura -, não vejo como politicamente positivo para o Brasil de hoje anular a "anistia recíproca" para julgá-los 40 anos mais tarde. Penso que isso, politicamente, oferece holofotes à extrema direita, facilitando o seu proselitismo no meio militar. Pavlovianamente potencializa a sua narrativa, faculta-lhe novos espaços. É um jogo de soma zero.
Para entender toda essa história é necessário também decifrar o que diabos sucedeu com a nossa democracia da Constituição de 1946. Meu amigo Darcy Ribeiro dizia que o governo de João Goulart fora "deposto por suas qualidades, não por seus defeitos". Tenho dúvidas.
É bom examinar historicamente como um governo democrático se torna de tal forma disfuncional, incompetente e fragilizado diante de uma ambição golpista à espreita desde 1954. Como consegue alienar a classe média, tornando politicamente viável a sua própria deposição. Como, num discurso insensato para suboficiais, sargentos e marinheiros no Automóvel Club do Rio de Janeiro, Jango promove a quebra da hierarquia, mas, depois, nem tenta seriamente resistir à quartelada, apesar de seu dispositivo militar legalista ainda poderoso. Enfim, como as ações desse homem bom acabam engendrando o mal.
E mais: como uma quartelada de um chefete distante do núcleo conspirador vence pelo telefone. Como um segmento extremista da oficialidade, sedento de poder em causa própria, por sucessivas e subsequentes quarteladas vai estabelecendo a ditadura: supressão das eleições presidenciais previstas para 1965, perseguições em massa, as primeiras torturas e, finalmente, a instituição de um poder ditatorial truculento e corrupto (lembrem-se de Yolanda Costa e Silva). Como a resistência a esse estado de coisas jamais logra unificar-se e mobilizar a maioria da população pelo restabelecimento da democracia perdida - isso só aconteceria duas décadas mais tarde -, mas parte para uma ação armada socialmente isolada.
Nesse contexto de isolamento social, a luta armada acabou favorecendo os segmentos mais duros do regime, que superestimaram, por vezes comicamente, o nosso poderio. Só para dar um exemplo, a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) no Rio de Janeiro, na época de suas ações mais espetaculares - o sequestro dos embaixadores da Alemanha e da Suíça e sua troca por 110 presos políticos -, tinha menos de 20 combatentes... e duas metralhadoras.
Além dos erros políticos, da visão autoritária e das vítimas de nossas ações, em situação de confronto, podem-se também atribuir crimes à guerrilha urbana? Em alguns casos, sim. Um marinheiro inglês, de 19 anos, estupidamente "justiçado", na Praça Mauá. Um militante que queria deixar uma das organizações executado pelos companheiros por suspeita de poder vir a se tornar um "traidor". Dois exemplos. Não foram tantos assim, mas, a bem da verdade, aconteceram. E as dezenas de pessoas, alheias a todo aquele conflito, que estiveram em algum momento sob a mira de nossas armas quando "expropriamos" os bancos dos quais eram clientes, ou nos seus carros, tomados de empréstimo revolucionário para uma operação?
A verdade terá sua serventia se for para vacinar a sociedade brasileira contra o conjunto de erros cometidos no Brasil desde 1946, e não somente repetir, repisar e reiterar o que todos já sabemos desde os relatórios detalhados do Tortura Nunca Mais. Foi sábia, ao contrário do que pretendem alguns, a escolha do ano da Constituição pós-ditadura getulista como ponto de partida. Não faz sentido apenas apurar a verdade para concluir pela milésima vez que a ditadura militar, de 1964 a 1985, foi malvada. Faz mais sentido tentar entender por que ela durou tanto tempo, mas, sobretudo, por que antes dela havia fracassado a democracia.
(*) Escritor, Jornalista, Deputado Federal (PV-RJ), Autor do livro 'Os Carbonários'
Não vejo utilidade numa Comissão da Verdade que me conforte em seu maniqueísmo. Ela pode ser útil apenas se conseguir dar à nossa democracia e às futuras gerações elementos de reflexão para entender e evitar qualquer repetição - a História pode ser cíclica - do que aconteceu. Um governo democrático, falido, uma intervenção militar galopante que se transforma em feroz ditadura, uma resistência armada que a seu modo atiça essa ferocidade, mas cujo fracasso a exime do risco considerável de se tornar, também ela, liberticida.
Não nos coloco no mesmo plano dos que suprimiram a liberdade, perseguiram centenas de milhares por motivos políticos durante mais de duas décadas, torturaram sistematicamente e fizeram desaparecer resistentes. Os que transformaram instituições militares em máquinas de repressão, monopolizaram o poder, impuseram a censura, liquidaram as eleições e promoveram um modelo de crescimento injusto e concentrador de renda cujas sequelas persistem. Mas sustento que os nossos erros, suas consequências e tudo o que resultou da nossa ideologia de então, nos países onde chegou ao poder, são discussão legítima na Comissão da Verdade.
Não há muita serventia cívica em ficar repisando o que já se sabe há tanto tempo: que houve torturas e execuções, com desaparecimentos autorizados pela cadeia de comando daquele regime. Não é mistério quem as praticou.
A Argentina e o Chile decidiram julgar alguns dos seus torturadores e carrascos. Por outro lado, o Chile foi forçado a manter Augusto Pinochet, o ditador-comandante, à frente do Exército em toda a primeira fase de sua democracia. Outros países, como a Espanha pós-franquista e a África do Sul, optaram pelo caminho de não julgá-los. A África do Sul, em que pese a barbárie do apartheid, optou por uma Comissão da Verdade didática, catártica, com o arcebispo Desmond Tutu.
Com todo o respeito a quem sofreu o que eu não sofri - escapei da prisão e da tortura -, não vejo como politicamente positivo para o Brasil de hoje anular a "anistia recíproca" para julgá-los 40 anos mais tarde. Penso que isso, politicamente, oferece holofotes à extrema direita, facilitando o seu proselitismo no meio militar. Pavlovianamente potencializa a sua narrativa, faculta-lhe novos espaços. É um jogo de soma zero.
Para entender toda essa história é necessário também decifrar o que diabos sucedeu com a nossa democracia da Constituição de 1946. Meu amigo Darcy Ribeiro dizia que o governo de João Goulart fora "deposto por suas qualidades, não por seus defeitos". Tenho dúvidas.
É bom examinar historicamente como um governo democrático se torna de tal forma disfuncional, incompetente e fragilizado diante de uma ambição golpista à espreita desde 1954. Como consegue alienar a classe média, tornando politicamente viável a sua própria deposição. Como, num discurso insensato para suboficiais, sargentos e marinheiros no Automóvel Club do Rio de Janeiro, Jango promove a quebra da hierarquia, mas, depois, nem tenta seriamente resistir à quartelada, apesar de seu dispositivo militar legalista ainda poderoso. Enfim, como as ações desse homem bom acabam engendrando o mal.
E mais: como uma quartelada de um chefete distante do núcleo conspirador vence pelo telefone. Como um segmento extremista da oficialidade, sedento de poder em causa própria, por sucessivas e subsequentes quarteladas vai estabelecendo a ditadura: supressão das eleições presidenciais previstas para 1965, perseguições em massa, as primeiras torturas e, finalmente, a instituição de um poder ditatorial truculento e corrupto (lembrem-se de Yolanda Costa e Silva). Como a resistência a esse estado de coisas jamais logra unificar-se e mobilizar a maioria da população pelo restabelecimento da democracia perdida - isso só aconteceria duas décadas mais tarde -, mas parte para uma ação armada socialmente isolada.
Nesse contexto de isolamento social, a luta armada acabou favorecendo os segmentos mais duros do regime, que superestimaram, por vezes comicamente, o nosso poderio. Só para dar um exemplo, a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) no Rio de Janeiro, na época de suas ações mais espetaculares - o sequestro dos embaixadores da Alemanha e da Suíça e sua troca por 110 presos políticos -, tinha menos de 20 combatentes... e duas metralhadoras.
Além dos erros políticos, da visão autoritária e das vítimas de nossas ações, em situação de confronto, podem-se também atribuir crimes à guerrilha urbana? Em alguns casos, sim. Um marinheiro inglês, de 19 anos, estupidamente "justiçado", na Praça Mauá. Um militante que queria deixar uma das organizações executado pelos companheiros por suspeita de poder vir a se tornar um "traidor". Dois exemplos. Não foram tantos assim, mas, a bem da verdade, aconteceram. E as dezenas de pessoas, alheias a todo aquele conflito, que estiveram em algum momento sob a mira de nossas armas quando "expropriamos" os bancos dos quais eram clientes, ou nos seus carros, tomados de empréstimo revolucionário para uma operação?
A verdade terá sua serventia se for para vacinar a sociedade brasileira contra o conjunto de erros cometidos no Brasil desde 1946, e não somente repetir, repisar e reiterar o que todos já sabemos desde os relatórios detalhados do Tortura Nunca Mais. Foi sábia, ao contrário do que pretendem alguns, a escolha do ano da Constituição pós-ditadura getulista como ponto de partida. Não faz sentido apenas apurar a verdade para concluir pela milésima vez que a ditadura militar, de 1964 a 1985, foi malvada. Faz mais sentido tentar entender por que ela durou tanto tempo, mas, sobretudo, por que antes dela havia fracassado a democracia.
(*) Escritor, Jornalista, Deputado Federal (PV-RJ), Autor do livro 'Os Carbonários'
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