sábado, 12 de maio de 2012

Cheia grande, cheia pequena. Sempre foi assim

Manuel Dutra (*) 

O sofrimento de milhares de famílias amazônicas é construído não pelos rios e seus ciclos naturais, mas pela demagogia, pelo oportunismo e pela corrupção. 

Os rios da Amazônia seguem o seu ritmo, mais ou menos como acontece ao longo dos séculos. 
Nas últimas décadas a “grande” mídia, com muitos jornalistas desinformados, vem mostrando cidades e vilarejos ribeirinhos tomados pelas águas como se isso fosse recente. 
Até as famílias de trabalhadores das regiões de várzea são apresentados como flagelados, como se estivessem vivendo um fenômeno até então desconhecido. 


As garças e o porto graneleiro da Cargill
Não sabem, esses jornalistas, que as várzeas são assim mesmo, seis meses com as suas terras férteis fora d’água, seis meses no fundo. E desconhecem que as pessoas que ali vivem estão adaptadas a esse vaivém, aproveitando de ambos os ciclos para plantar culturas de ciclo curto e para pescar. E esquecem de dizer nas suas reportagens que os varzeiros da bacia do Amazonas desconhecem a fome, ao menos nos níveis verificados nas favelas das grandes cidades brasileiras. 

O que há de novo na Amazônia é a urbanização acelerada, levando incontáveis famílias migrantes a se acomodarem em barracos nas periferias inundáveis, muitas vezes desavisados de que ali é o lugar sazonal do rio, ou do igarapé ou do lago que seca durante o verão. A rigor, famílias que chegam às cidades ribeirinhas ocupam terrenos que têm as águas como proprietárias e, como tal, retornam ciclicamente a seus leitos. 

Mas isso não é fenômeno exclusivo da Amazônia, é de todas as cidades brasileiras seja na costa, seja nos interiores banhados por rios e córregos. Belém, Manaus e Recife talvez sejam os melhores exemplos. Nós jornalistas costumamos mostrar o problema sem descer às causas desse flagelo, originado na desigualdade social que empurra os mais fracos para terrenos impróprios para habitação. 

Numa cidade média, como Santarém, a existência de um crescente número de famílias migrantes em áreas sujeitas às enchentes é relativamente recente. Elas se acomodam justamente nas pontas da malha urbana, a oeste da cidade nas bordas do Lago do Mapiri, e a leste, nas imediações do Lago Maicá. Até os recém-nascidos sabem que são áreas componentes do leito maior das águas. 

Como em Santarém e, como é regra nas cidades brasileiras, a inexistência de planos de ocupação do solo urbano transforma as cidades em amontoados humanos, nos quais sabidamente os melhores terrenos ficam com que tem mais dinheiro. Se houvesse democracia, justiça e decência por parte dos gestores desses municípios, não haveria milhares de famílias sujeitas às inundações periódicas e naturais dos rios e igarapés. 

Planejamento urbano, no sentido original deste conceito, significa repartição equânime e democrática dos espaços, dos terrenos entre todos. Só que, organizar o espaço urbano e dar sentido econômico, social e cultural às terras de várzea, incluir a massa de trabalhadores ribeirinhos na vida contemporânea, tudo isso implica na destruição de outra praga nacional e bem amazônica: será o fim das eternas mamatas tão periódicas quanto as cheias dos rios, quando políticos e “autoridades” em geral mobilizam-se na busca das verbas sazonais para atender os “flagelados”, particularmente como nesta presente temporada de véspera de eleições municipais. 

O sofrimento de milhares de famílias amazônicas é construído não pelos rios e seus ciclos naturais, mas pela demagogia, pelo oportunismo e pela corrupção.

(*)  Jornalista e Professor

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