sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

A mão estendida ao Hamas


No governo do general Ernesto Geisel (1974-1979), o Itamaraty praticava o "pragmatismo responsável", na expressão cunhada pelo então chanceler Azeredo da Silveira, para designar as ações externas que deveriam respaldar o projeto do "Brasil Potência" acalentado pelo regime militar. Foi um fiasco, mas pelo menos era uma política. Já no governo do presidente Lula, pode-se dizer que impera a diplomacia do voluntarismo irresponsável - cujo mentor e principal protagonista, o chanceler Celso Amorim, parece incansável em exibir mundo afora. Soberbamente alheio aos danos que ela inflige ao respeito com que o País, a justo título, quer ser ouvido pela comunidade internacional, o ministro fala o que lhe dá na veneta, nas situações mais inconvenientes e diante dos interlocutores mais improváveis. Dá a impressão de tocar de ouvido um arremedo de marcha triunfal, provocando na plateia as reações adversas que, mais não fosse, ele tinha o dever de antecipar.

Foi o que se viu quarta-feira em Genebra, onde Amorim se reuniu com o chanceler da Autoridade Palestina (AP), Riad Malki, para tratar da oferecida participação brasileira no monitoramento do processo de paz com Israel - na duvidosa hipótese, acrescente-se, de que venha a ser descongelado em futuro próximo - e da visita que Lula fará em março a Israel, territórios palestinos e Jordânia. Quando anunciou a viagem, aliás, o presidente teve a desavisada ideia de propor que a seleção brasileira disputasse na ocasião uma partida com um imaginário combinado israelense-palestino. O amistoso, no sentido literal do termo, serviria para consagrar o pretendido engajamento do País na solução do inabalável conflito entre eles. Em Genebra, Malki recusou polidamente a oferta. "Por não haver processo de paz e ainda existir um impasse de ambos os lados", ponderou, "o momento pode não ser o certo para isso."

Mas, o que deixou o palestino estomagado foi uma tirada incomparavelmente mais grave: a declaração de Amorim de que o Brasil poderia estabelecer um diálogo com o Hamas. 
Apoiado pelo Irã e a Síria, o movimento extremista não admite reconhecer a existência de Israel. Em 2007, assumiu o controle da Faixa de Gaza, expulsando os representantes do partido Fatah, pilar da Autoridade Palestina. Desde então, todas as tentativas árabes de reaproximá-los fracassaram. Além disso, o Hamas é considerado pelos países ocidentais uma organização terrorista. Os brutais ataques israelenses a Gaza, há um ano, que devastaram o lugar e mataram cerca de 1.400 pessoas, não alteraram a condição de pária do Hamas aos olhos do mundo. O único interlocutor palestino dotado de legitimidade é a AP do presidente Mahmoud Abbas. E nenhum dos projetos de paz entre árabes e judeus prevê o estabelecimento de duas Palestinas, uma na Cisjordânia, outra em Gaza. A troco do quê, portanto, a mão estendida de Amorim ao Hamas?

Sem entrar em detalhes, ele revelou ainda que o Brasil já manteve "contatos informais" com a entidade no passado. Seja lá o que tenha de fato ocorrido, a menção absolutamente desnecessária só serviu para agravar a rata do chanceler. "Acreditamos no poder da razão", filosofou, em um esforço heroico para justificar a possibilidade de o Itamaraty voltar a dialogar - formalmente, presume-se - com o movimento. "Talvez seja inocente", concedeu, "mas temos de conversar." Fosse apenas inocência, já seria inaceitável. Nenhum país que queira ser levado a sério pode ter um ministro de Relações Exteriores que admita ser ingênuo. Mas não é disso que se trata, evidentemente - e sim de uma leviandade motivada pela vontade de se dar fumaças de importância. O chanceler Malki, porém, tomou as suas palavras pelo valor de face e deu-lhe uma lição pública sobre as realidades políticas palestinas.

"Qualquer aproximação com o Hamas hoje pode ser interpretada pelo Hamas como uma espécie de fraqueza da comunidade internacional e um sinal de reconhecimento do sistema de facto criado em Gaza por meio da força e de um golpe. Por isso os países devem ter cuidado", advertiu, mais contundente do que ao dispensar o "jogo da paz" proposto por Lula. Ao fim e ao cabo, só restou a Amorim concordar com Malki que as portas ao Hamas só poderão se abrir quando a entidade fizer parte do processo político palestino e aderir aos seus princípios básicos.

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