sábado, 31 de julho de 2010

Adrenalina

Bellini Tavares de Lima Neto (*)

Embora o recinto seja dos grandes, até que não havia tanta gente assim. O que contraria as expectativas, pois quando se vai a uma agência do INSS o que se espera é uma pequena multidão se espremendo lá dentro, aquele clima de mundo cão, gente de idade demonstrando cansaço que certamente não começou ali e nem se deve à espera já tão conhecida de todos. É aquele cansaço que já vem de muitos e muitos anos e no mínimo o dobro de desenganos. Além de um considerável contingente de aflitos tentando uma pericia médica para lhes atestar a desvalia e a conquista de um beneficio que, ao menos, fará da vida um inferno em tempo apenas parcial. No entanto, até que não havia tanta gente assim. Mas, ainda assim, uma visita a uma agência do INSS dá o que pensar.

Logo na entrada já me deparo com duas jovens vindo em direção contrária e pisando tão duro quanto seria possível. E soltando os cachorros. “Você não é gerente de coisa alguma”, foi a primeira exclamação de uma das moças se dirigindo a um cidadão de cabelos semi-grisalhos, olhos ligeiramente puxados e fisionomia que lembrava um desses guerreiros mongóis. Não contente com a espinafração inicial, a moça parou bem no meio do salão e ensaiou um discurso de protesto. “Se estiver demorando muito para vocês serem atendidos, a culpa é dele” apontando para o semi-Átila tupiniquim. Em seguida vem o próprio com um sorrisinho meio sem graça, se desculpando pela atitude da moça. Uma outra jovem, sentada ao meu lado, se sente incentivada a atear um foguinho à conversa e desanda a filosofar a respeito da falta de compostura daquela turma de funcionários que parece não se importar com coisa alguma. E aproveita para meter a boca na moça que está sendo atendida no guichê bem em frente: “Essa fulana está aí há quase uma hora”. O gerente da Mongólia volta ao seu posto atravessando por dentro dos balcões todo o corredor. Aí um senhor de origem nipônica, que nós habitualmente chamamos de “um japonesinho” lança seu veredicto: “Esse gerente é grosso, mal educado, vive maltratando todo mundo. O senhor já tratou com ele?” A pergunta é para mim. Não, nunca tratei com ele, mas já fica claro que o sujeito não goza de apoio e simpatia do público. Pelo que se nota, o tal japonesinho deve ser uma espécie de despachante ou agente ou coisa parecida, que ganha a vida enfrentando aquela arena todos os dias. E, olhando para ele, aparência frágil, ninguém supõe que seja tão resistente.

A conversa começa a fluir com o abnegado despachante e ele me conta de uma falcatrua acontecida no prédio onde mora. Coisa de síndico ou grupelho de moradores que tomam o poder e partem para essa que tem se tornado uma prática consagrada nos padrões nacionais: o superfaturamento de obras. E fizeram estrago. O lado bom da história é que, pelo que contou o homenzinho, a população condominial reagiu e está em vias de colocar os “benfeitores” no xadrez. Coisa rara, não? Nesse particular, difere um pouco do comum. Já quase no final do relato chega uma senhora que, pelo jeito, era a cliente do nosso agente oriental. Ele, então, mostra o número de sua senha a ela, talvez para tentar consolá-la pelo tempo que já vai passando. A senha que ele porta, segundo consta, é destinada aos casos ditos “preferenciais”. Aquilo já me bate um pouco indigesto. Começo a temer pela pergunta que se segue. E ela é inexorável: “A sua também é preferencial”? Tento disfarçar, mas não há a menor chance. Bem do lado do número está inscrito um “PR” delator e inconteste. “O senhor já chegou nos sessenta?” Japonesinho abusado, por sorte logo chamaram o número dele e ele foi-se embora. Fiquei eu olhando para aquela senha despudorada que, além do indecente “PR” ainda consignava o horário em que eu a havia recebido. Já estava lá sentado há uma hora.

Chega a vez do japonês que até estava me parecendo simpático ate o episódio do PR. Lá se foi ele enfrentar os mistérios dos guichês. Fiquei por ali pensando em como matar o tempo. Não precisei esperar quase nada. Bem à minha frente, um senhor sentado diante de um guichê vazio, resolveu esquentar o ambiente. Dirigiu-se ao funcionário que ocupava o guichê ao lado e que não estava atendendo ninguém, para perguntar, em tom irritado, onde, diabos havia se metido o sujeito que o estava atendendo. “Faz meia hora que o cara saiu e não me disse nada. Levou a minha senha e sumiu” O funcionário ficou meio sem jeito e, nessas horas, aparecem as perguntas mais sem cabimento: “Ele estava atendendo o senhor?” Convenhamos, pergunta assim corre o risco de receber resposta à altura. “Falta de respeito” grunhiu o (mal) atendido. “O senhor não pode generalizar” se defendeu o funcionário desocupado. E saiu em busca do fujão. Voltou pouco tempo depois avisando que ele estava procurando alguma coisa para o (mal) atendido, mas já estava voltando. E o acusado voltou fazendo com que o velhote ficasse ainda mais sem graça que o funcionário desocupado. E eu ali, me preocupando em como matar o tempo.

De repente, o sacrossanto painel estampa o meu número. Levantei e fui em direção ao guichê de número 52. Um rapaz muito simpático me atende. Eu explico o que pretendo fazer e lhe apresento os documentos que uma outra agência do mesmo INSS me havia instruído apresentar. Ele emite um sorriso entre simpático e perdido e pede licença para se ausentar. Eu espero. Ele volta em um ou dois minutos com um mesmo sorriso perdido e explica que, como estava retornando de uma licença de dois meses, não se lembrava se o procedimento e os documentos que eu trouxera estavam em ordem. Felizmente, em rigorosa ordem. Vamos, então, ao sistema. Ooops, o sistema dele não está no ar! É preciso pedir autorização ao chefe. O chefe é precisamente o guerreiro mongol de ralos apoios e nenhuma benquerença. Mas lá se foi o meu homenzinho. Chegou perto do temido e, para minha surpresa e alivio, a conversa transcorreu muito amena, embora um pouco longa demais. Mas, passados alguns minutos, volta o meu homenzinho acompanhado de um outro. Esse outro já tem ar de veterano, acostumadíssimo a confundir os usuários e lhes fazer parecer que vítimas, na realidade, são eles, os funcionários, que tem um expediente desumano e nenhum apoio. Nem sala com ar condicionado para o chefe ainda foi providenciado. O veterano digita alguma coisa no teclado e o sistema é recuperado. Lá se vai ele, triunfal e o meu atendente me informa, então, que, como ele estava em licença, seu sistema havia sido suspenso e ninguém havia liberado de volta. Eu nem me atrevi a perguntar quanto tempo já fazia que o moço havia retornado de sua licença. E menos, ainda, porque havia saído de licença. Achei que era pergunta demais.

Manuseados os papéis, emitido e selado um requerimento, perguntei em quanto tempo teria uma resposta. “Ah, não demora muito, não. De 45 a 60 dias”. Bem, o tempo é uma questão relativa, mesmo. Acho até que a Teoria da Relatividade tem alguma coisa a ver com isso. Agradeci a atenção do moço que, realmente, foi muito gentil. Sai pensando em duas coisas: no tal recinto de proporções nada acanhadas há cerca de sessenta guichês e não mais que uns quinze funcionários atendendo. Ter apenas uns quinze funcionários não me causou nenhuma surpresa.

O que ficou me martelando a cabeça foram os quase sessenta guichês. Não poderiam ser transformados em sala de espera? Essa foi uma coisa, mais uma curiosidade, mesmo.
A outra, não. A outra já é de preocupar.
Já pensou se um dia isso tudo ficasse sério? Será que a gente ia agüentar?

(*) Advogado, agora avô e morador em São Bernardo do Campo (SPo)
Escreve para o site O Dia Nosso De Cada Dia - http://blcon.wordpress.com/

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