quinta-feira, 10 de maio de 2012

A temporada de fogo vai começar

Lúcio Flávio Pinto (*) para Cartas da Amazônia  

O verão está começando na maior parte da Amazônia, região que tem apenas dois climas de fato: o semestre das chuvas abundantes (de novembro a abril) e o semestre de menos chuva, evoluindo para pouca chuva em algumas áreas, de maio a outubro.

Embora as chuvaradas afinem, os rios da calha do rio Amazonas, o maior do mundo, ainda sobem até junho ou julho, por conta do degelo dos Andes ou de chuvas nas cabeceiras de seus afluentes, em alguns casos distantes mais de mil quilômetros do curso principal. 

Na Amazônia, características básicas e gerais camuflam variedades e diferenças, imperceptíveis ao observador menos atento e adestrado. Há muitas Amazônias geográficas e ainda mais numerosas Amazônias humanas. E, com perdão do léxico, não Amazônias (agora sem o hífen enriquecedor, castrado por uma reforma ortográfica obtusa que os brasileiros engoliram).

Em confronto dentre si ou entre si, essas Amazônias evoluem para conflitos cada vez mais graves e frequentes. Certamente vão explodir em futuro mais próximo do que imagina a opinião pública nacional. 

O Brasil declara a Amazônia sua prioridade, mas com tantas formas de acompanhamento, fiscalização e antevisão na burocracia e na academia, o que predomina é a desinformação. Incapaz de perceber a dinâmica do dia a dia, a sociedade brasileira age sempre de forma retardada na Amazônia. Lava o leite derramado, chora Inês morta e lamenta o fato consumado. 


Com o domínio do sol sobre a chuva, os fluxos migratórios se intensificam. Mais gente se movimenta dentro da região, deslocando-se de um ponto para outro. E mais gente chega de outros lugares do país e do exterior para se estabelecer na Amazônia. 

Uma das marcas definidoras das áreas pioneiras é exatamente essa movimentação de pessoas. Tem sido assim na Amazônia desde o final dos anos 1950. A rotação se intensificou no início dos anos 1970, com a implantação de um sistema rodoviário (que deu acesso ao interior da região, até então intocada). 

A hipertrofia rodoviária alcançou extensão superior à dos cursos d'água, embora estes formem a maior bacia hidrográfica do planeta. O paradoxo fomentaria um modal de transporte artificial e, por isso, destrutivo da natureza, sobretudo da floresta e sua biodiversidade. Uma vez inventada, a pólvora não tem apenas uso pacífico. As estradas se tornaram uma pólvora bélica sem paralelo na história amazônica. 

Mas há novidade nesses fluxos, intensificados e modificados pela circunstância de que vários dos "grandes projetos" do século passado já entraram na fase operacional (o primeiro, a mina de bauxita do Trombetas, no Pará, a maior do mundo, em 1979) e outros "grandes projetos" estejam no pique ou em andamento. 

O índice investimento per capita deve atingir na Amazônia valor sem paralelo no restante do Brasil. As três maiores hidrelétricas estão sendo construídas na região. Atestam que, mesmo com toda resistência provocada por seus impactos ecológicos e sociais, elas dão prosseguimento à opção do governo pela energia de fonte hídrica como a base da matriz energética nacional. 

Essas três usinas representam investimento de 60 bilhões de reais. Nela trabalham mais de 40 mil pessoas, comandadas pelas três maiores empresas de construção civil do país. Todas já enfrentaram graves incidentes coletivos. Alguns deles, como os mais recentes, de feição política, realizados em torno de reivindicações trabalhistas, econômicas e sociais. Mas outros de nítido vandalismo, como o que aconteceu no ano passado na hidrelétrica de Jirau, em Rondônia, quase arrasando todo o canteiro de obras. 

Esses fenômenos se formam a partir de um caldo de cultura complexo. Refletem, em certa medida, a ação dos movimentos sociais organizados e das ONGs, nacionais e internacionais. Há eco significativo às pregações e denúncias sobre os malefícios desses empreendimentos e o quanto de recursos púbicos eles desviam para bolsos particulares. 

Discursos deficientes ou parciais parecem provocar no ouvinte a disposição de, ao invés de criar militância paralela contra a consolidação desses males, numa opção cívica, deles se aproveitar particularmente (guardada a diferença de escala com a S/A). Se o empresário rouba o governo com obras superfaturadas ou vários tipos de fraudes, que aumentam seu lucro, cada um procura tirar sua casquinha. 

É claro que nesse processo coletivo de apropriação ilícita de bens — públicos e privados — o criminoso tem vantagens. E quando integra uma organização criminosa, mais vantagens ainda. Este é o dado novo nos fluxos migratórios para a Amazônia, velhos de meio século: o crime organizado está se desviando das suas bases tradicionais, na parte mais rica do país, para as frentes pioneiras amazônicas. 

Não se trata mais apenas do bandido individual, do delinquente isolado: é uma engrenagem com cabeça pensante, braços atuantes e um contingente de mão de obra bastante significativo. 

Os vários condomínios do crime já se infiltraram em assentamentos rurais, com resultados modestos. Multiplicam as típicas operações de bandidagem, mas bem estruturadas, como a que nesta semana uma quadrilha aplicou num município do Pará: dividida em dois grupos, assaltou simultaneamente os dois principais bancos da sede municipal, com pleno êxito. 

Também começam a penetrar nos empreendimentos de grande porte em plena atividade, como os das mineradoras. E agora seus alvos principais são as grandes concentrações de trabalhadores. Não há maiores do que as reunidas nas enormes hidrelétricas, como as dos rios Madeira e Xingu. 

Não se trata de criminalizar manifestações de reivindicação e protesto, que as autoridades costumam transferir da competência social para a policial. O desafio é o de, sem cair na repressão policialesca tradicional das elites brasileiras diante dos movimentos de massa, não deixar a sociedade sem proteção contra essa nova ameaça: o crime organizado de origem nacional que se torna também amazônico. 

Muita atenção neste verão. Pode se tornar simbolicamente mais quente do que alcança a temperatura do sol, o rei da temporada, ou dos desmatamentos, a obra mais comum (e antiamazônica) da maior máquina de destruição nessa fronteira, a humana. Quem viver, verá. 

(*) Jornalista, sociólogo e escritor 
 

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