quarta-feira, 2 de maio de 2012

Primeiro de Maio

Flávio Gomes (*) 

É um verdadeiro pé no saco. Todo dia 1° de maio recebo algumas dezenas de e-mails intimidatórios. “E aí, não vai escrever nada do Senna?”. 

Como se a cada 1° de maio, a partir de 1995, escrever sobre o Senna no aniversário de sua morte passasse a ser uma obrigação de quem porventura trabalha com automobilismo. Ou, ainda, de quem porventura estivesse em Imola naquele dia, como eu. 

É claro que, 18 anos depois, o que tinha de falar e escrever já falei e escrevi, e estou-me tornando repetitivo, porque receio que já tenha me queixado disso antes, também — que nada mais tenho a dizer, nem a escrever, portanto não me encham. 

Mas todo ano aparece alguma coisa sem pé nem cabeça para que os adoradores do martírio se deliciem. Agora é essa ilustração aí, que possivelmente é coisa velha, eu mesmo já tinha visto, mas que hoje chegou à minha caixa de e-mails em quantidade assustadora. “E se…?” geralmente é o que os remetentes colocam na janelinha de “assunto”, como a imaginar que eu vá abrir isso, dar um suspiro, parar tudo que estou fazendo, colocar o indicador e o polegar entre os olhos, abaixar a cabeça e passar alguns minutos em silêncio refletindo sobre esse “se”. 

Oh, que puta sacada. 

Poupem-me, fariseus. Negócio mais mórbido, isso sim. E se o quê? Se não tivesse morrido? Seria ótimo. Uma tragédia a menos para a conta. Punto, basta. “Ah, ele seria decacampeão mundial, Schumacher ia ver só, o Brasil se tornaria uma potência, nossos pecados estariam todos remidos, ele seria presidente da República, ou papa, talvez.” Ninguém me mandou mensagem nenhuma com esse teor, apenas fiz uma colagem. Elas chegaram avulsas, um pedaço em cada uma. Vão pingar aí nos comentários, também. Parece que o Reginaldo Leme fez um exercício desses na revista “Alfa” do mês passado, mas não vi. Não tenho ideia do quê escreveu. Depois leio. Tenho até medo. Não do Regi, mas do resultado. É muito delicado especular sobre essas coisas, ainda mais quando se trata de alguém como Senna, de quem, no Brasil, é proibido não simplesmente falar mal, afinal nem há tanta coisa má para falar, mas é terminantemente proibido não falar bem o tempo todo e não ser fã e não tê-lo como ídolo, exemplo, inspirador. 

Mas se alguém quer ir além do que acho que seria o resultado da não-morte de Senna, OK, podemos ir. Ele poderia virar político, por exemplo, o que seria uma desgraça dadas suas posições expressas em vários momentos — conservador ao extremo, Ayrton era um admirador de Paulo Maluf, entre outros expoentes da época. Casaria com Adriane Galisteu? Pode ser, o que nos pouparia dos programas chatos que essa moça apresenta na TV. Teria filhos? Talvez, e coitados deles se resolvessem correr de carro. E a segurança na F-1? Talvez não melhorasse tanto quanto melhorou a partir de seu acidente — o último fatal na categoria, que jamais experimentou período tão longo sem morte de pilotos. 


A canonização informal de Senna, se ele sobrevivesse, é dúvida para este que vos escreve. Quando alguém morre da maneira como ele morreu, e é considerado um herói nacional, embora fosse apenas um piloto de corrida, a tendência é mesmo virar santo. Vivo, não sei como seria. Talvez cometesse deslizes pessoais, se envolvesse em escândalos financeiros, fosse acusado de engravidar alguma menina numa aventura por aí, poderia ser pego numa blitz da Lei Seca, se embrenhar em aventuras noturnas com o Ronaldo Fenômeno, sonegar Imposto de Renda, ser amigo do Carlinhos Cachoeira, quem sabe o que poderia acontecer? 

Não há mal nenhum em ter um ídolo, cultivar sua memória, exaltar seus feitos, se emocionar com eles. O que me irrita um pouco quando se fala em Ayrton Senna é essa mania de atribuir a ele a exclusividade das virtudes: um exemplo de superação, humilde, batalhador, não desistia nunca, perseverante, guerreiro, temente a Deus, bom filho, patriota e blablablá. 

Sempre digo: era apenas um piloto de carros, dos melhores, diga-se, com suas qualidades e defeitos, como todos nós. Não foi um mártir, alguém que morreu na cruz para redimir nossos pecados. Mesmo sobre o da cruz há muitas controvérsias, portanto devagar com o andor que os santos, todos, são de barro.

 (*) Jornalista , piloto e escritor. Comentarista esportivo da ESPN

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