Fernanda Ezabella (*)
Fazia tempo que não via um documentário musical tão incrível. Porque, vamos combinar, os últimos (George Harrison, Pearl Jam, Rolling Stones) eram tão chapa-branca que davam vergonha alheia.
Mas “Marley” é diferente. É um filme sobre Bob Marley, sobre reggae, sobre Jamaica, sobre África. As duas horas e meia de duração passam voando.
Ao mesmo tempo em que transforma Marley em deus, o filme deixa claro que é um deus bem cheio de falhas. É um Che Guevara da música, um símbolo social e também um estereótipo multiplicado em estampas de camiseta.
É emocionante quando ele volta à Jamaica em 1978 para fazer um show pela paz, num país em frangalhos por causa da guerra civil, e consegue levar ao palco os dois líderes dos partidos rivais, que se dão as mãos para delírio da platéia.
Ele também vai ao Gabão e descobre apenas ao chegar lá que está sendo convidado por um dos piores ditadores africanos. Marley e sua banda tocam mesmo assim. E há também cenas da independência do Zimbábue, em 1980, no qual Marley vai tocar para o recém-eleito Robert Mugabe, até hoje no poder…
O filme começa em Gana, uma cena estranha, no qual um guia mostra o grande portão “Door of No Return” – onde os escravos eram embarcados e não voltavam mais. Depois, vai para o interior da Jamaica, aquela pobreza cinematográfica, e fala da infância de Marley, do pai branco, do preconceito por ser mulato, da música como escape e, claro, do encontro com a religião Rastafari.
Aqui é outra aula de história. Mas confesso que não entendi muito bem a veneração que os rastas têm com o imperador da Etiópia Haile Selassie I (1930-1974), suposta reincarnação de Jesus.
Enfim… mas é a religião que serve de “desculpa” para a mulher de Bob Marley, Rita, aceitar todas as traições (ele teve 11 filhos de sete mulheres diferentes). “Eu era como um anjo guardião, estava lá para cuidar dele. Para mim, estávamos numa missão espiritual”, ela diz.
Dois dos filhos aparecem, lembram do pai maconheiro e da dificuldade de ter amiguinhos em casa. Outras mulheres também aparecem: umas dizem que ele era bastante tímido, outras que era um galanteador de primeira.
É curioso como ele construiu seu público primeiro na Europa e teve problemas em alcançar os negros nos EUA. Seus shows em cidades americanas lotavam, mas só de brancos.
E, de uma hora para a outra, ele é diagnosticado com câncer, espalhado pelo corpo todo. De repente, o show do dia vira o último da carreira, em Pittsburgh, 1980. E ele some para se tratar num retiro holístico na Alemanha, numa cidade coberta de neve. Marley perde os dreads, aparece fraco. Morre em maio de 1981.
Anos antes, em 1977, ele tinha sofrido melanoma, um câncer de pele, e quase perdido um dedão do pé. O problema aparecera após ele se machucar jogando futebol, uma de suas paixões. Mas é triste quando um entrevistado lembra: “Se ele tivesse feito os check-ups nos anos seguintes, ele poderia estar vivo ainda hoje.”
(*) Jornalista e correspondente da Folha de São Paulo em Los Angeles (EUA)
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