quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Os tempos do grupo

Bellini Tavares de Lima Neto (*) 

Vez por outra eu me recordo das aulas de Educação Moral Social e Cívica. Por mais estranho que possa soar aos ouvidos menos vetustos, já houve disso na escola um dia. 
E era no que, então se chamava de Curso Primário ou, mais familiarmente dizendo, Grupo Escolar. Nessas aulas, a professora (era sempre uma professora e uma só para ministrar todas as matérias – Linguagem, Aritmética, Geografia, História e Educação Moral, Social e Cívica) ensinava coisas sobre as datas cívicas, pátria, família, higiene, noções de boas maneiras e coisas do gênero. Aí se aprendia aquela história de cantar o Hino Nacional em datas festivas, comemorar Dia da Bandeira, Dia da Independência, Dia da República, Dia da Libertação dos Escravos, Dia do Descobrimento e similares. Sou obrigado a confessar que tudo isso aconteceu, na minha vida, antes da inauguração de Brasília. Portanto, o que se comemorava no dia 21 de abril era o Tiradentes. 

Ás vezes fico me perguntando por que, assim do nada, eu me lembro de coisas assim. Hoje, por exemplo, fui intimado a comparecer ao supermercado. Não tenho nada contra ir ao supermercado, desde que tenha alguém comigo para fazer as compras. Não me ponham para escolher escarola ou rúcula ou outras assemelhadas porque eu jamais consegui distinguir um tomate de um caqui. Mas, minha pena foi significativamente atenuada porque minha filha me acompanhou. Assim, até que eu vou mais ou menos. 

Chegamos ao pátio de estacionamento. Havia vagas suficientes para todo mundo, mas, como se sabe, andar é algo muito semelhante às mais apavorantes torturas que a mente mais doentia do homem já produziu. Assim, a primeira constatação é que se forma um pequeno congestionamento para que os frequentadores possam conseguir um lugarzinho para estacionar, de preferência ao lado da gôndola das frutas ou dos cereais. Os que ficam atrás, na fila, aguardando, se tornam inteiramente invisíveis, se é que não desaparecem, desmaterializam. Eu, então, dou uma volta por caminhos menos visitados, em busca de qualquer lugar onde possa parar o veículo. 

Sou feliz. Consigo uma vaga. Estaciono e, por mais incrível que possa parecer, não incomodo ninguém. Descemos do carro e nos dirigimos ao supermercado. Eis que, em nossa direção, vem vindo outro veículo. Eu olho atentamente para a faixa amarela pintada no chão no asfalto do pátio de estacionamento e observo que existe ali uma seta indicando uma direção exatamente oposta àquela em que o tal veículo vem vindo. Olho bem para a pintura e não consigo enxergar nela, uma verdadeira obra de arte. Parece muito sem graça e, de quebra, sem utilidade alguma. 

Bem rente à entrada da loja há umas tantas vagas especiais. São as reservadas aos deficientes e aos idosos. Eu até teria o direito de usar uma delas, mas, diante da dificuldade de locomoção no meio dos carros, optei por ficar na primeira vaguinha que encontrei. Aí, nos aproximamos das tais vagas especiais e me dou conta que deveria estar lá dentro da loja alguém com a notável marca etária de, no mínimo, 120 anos. Afinal, se, para estacionar nas vagas reservadas aos idosos é preciso contar pelo menos 60 anos, o individuo ou individua que estacionou ocupado duas vagas deve ter, pelo menos, o dobro disso. Fantásticas as descobertas que se faz num supermercado.

Entramos na loja. Encontrar e comprar os produtos para que fui escalado acaba se tornando tarefa altamente facilitada pela presença salvadora de minha filha. Enquanto ela procura os produtos, eu a sigo com o carrinho. Nisso acabo estacionando próximo a dois cidadãos que estão conversando. 

Se há uma tentação na vida à qual eu não resisto é ouvir conversa alheia. 
Estiquei minhas orelhas e comecei a prestar atenção. Um deles era bem mais velho que o outro. A principio, aquilo me parecia uma discussão com chances de virar briga. 
O mais velho mal deixava o mais novo falar, retrucava, cortava a fala do oponente. 
Mas esse oponente parecia decidido a continuar a conversa, deu uma espécie de intimação ao mais velho e a conversa entrou nos trilhos. Descobri que o assunto era um governo militar. O mais velho, então, passou a dissertar sobre os tempos da ditadura e a esclarecer que, dependendo do país, o regime militar é benéfico. Essa tinha sido a nossa experiência. Criticou o pessoal do partidão de apoio aos governistas esclarecendo que se travava de gente egressa da UDN. Apenas a título de esclarecimento, UDN morreu há décadas. Jânio Quadros foi um de seus destaques. 

Eu fiquei ouvindo e consegui me controlar para não entrar na conversa. 
Só queria perguntar ao cidadão mais idoso (e que parecia se prevalecer disso como se fosse uma testemunha ocular da História) se ele conhecia algum país, em todo o planeta e em todos os tempos, que tivesse se desenvolvido a contento debaixo de uma ditadura, seja ela de esquerda, de direita, de centro, de cima, de baixo ou de onde ele quisesse. 

Achei melhor ficar quieto e continuar a conduzir o carrinho onde minha filha depositava tudo aquilo que encontrava com uma desenvoltura irritante. Fim da tarefa. Passamos no caixa, pagamos e saímos. Estamos colocando as compras no porta-malas do carro quando um automóvel, em velocidade um pouco mais elevada, passa por nós e sai do supermercado pela porta onde, no chão, havia outro daqueles desenhos inúteis e feios, uma seta indicando a direção exatamente oposta àquela que o veículo passou para ir embora. 

Voltei para casa, continuei o meu espinhoso trabalho de tentar escrever uma canção no compasso de 5 por 4, coisa que para mim é complicado. Mas, mal consegui me concentrar porque, estranhamente, a Dona Maria da Graça insistia em ficar martelando no meu ouvido, lá pelas bandas do Grupo Escolar Godofredo Furtado, aquela lenga-lenga de Educação Moral, Social e Cívica. Estranho. 

(*) Advogado, avô e morador em São Bernardo do Campo (SP)

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