José Antonio Segatto (*)
Um fato causou surpresa nas últimas eleições presidenciais: o apoio quase unânime das centrais sindicais à candidata do PT. De procedências, concepções e práticas muito diversas, sempre às turras e trocando impropérios, as centrais travaram, durante longo tempo, competição pelo domínio do movimento sindical. Nos últimos anos, no entanto, deram de andar de braços dados, afinados e em estranha harmonia.
Como explicar a inusitada reviravolta e a misteriosa unanimidade?
Um recuo, não muito distante, na História, pode contribuir, para o entendimento dessa aliança, suas motivações, conveniências e seus interesses.
Nos anos 1970/80, algumas teses acadêmicas sobre o sindicalismo tornaram-se correntes. Difundidas pela mídia e por outras instituições da sociedade civil, penetraram e disseminaram-se no movimento operário e sindical e converteram-se em hegemônicas — estiveram mesmo na base e na origem da reordenação do movimento sindical e da esquerda naqueles anos. Afirmavam, em linhas gerais, que o movimento operário/sindical até 1930 fora um movimento combativo, autônomo e revolucionário e, após essa data, teria sido derrotado e subordinado ao Estado; convertido em organismo burocratizado, de colaboração, passou a ser manipulado pelo populismo. Essa situação teria perdurado até 1978/80, quando o autêntico movimento operário/sindical, no ABC paulista, teria iniciado sua ressurreição.
O “novo sindicalismo”, como passou a ser denominado, contestava desde a estrutura sindical (unicidade, verticalização, imposto sindical) até a intervenção e mediação do Estado nas relações entre capital e trabalho. A luta por autonomia e liberdade sindical confundiu-se com o combate ao Estado, à defesa da negociação direta entre patrões e trabalhadores e ao livre-arbítrio do mercado na compra e venda da força de trabalho.
A principal liderança do “novo sindicalismo” (Lula) chegou mesmo a afirmar que a Consolidação das Leis do Trabalho ( CLT) era o “AI-5 da classe operária”.
Aquelas análises e teorias forneceram lastro intelectual e suporte ideológico ao “novo sindicalismo”, ao serem tornadas — pela mídia, pela Igreja, pelos intelectuais, sindicatos, partidos e outros setores da sociedade civil — ideias-força.
É fato que o Partido dos Trabalhadores (PT) e seu braço sindical, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), gerados na luta contra a política trabalhista da ditadura, fizeram sua aparição pública combatendo o intervencionismo estatal, identificado como autoritário.
Na passagem dos anos 1980/90, uma série de fenômenos e acontecimentos alteraria tal atitude. O conjunto de transformações, que já estava em curso em outras partes do mundo, passou a incidir de modo mais direto no Brasil e alterou substancialmente as relações de trabalho, com repercussões intensas e extensas na forma de organização sindical e política e nos movimentos reivindicativos dos trabalhadores.
Foi quando se colocou a questão da reforma do Estado e, no seu bojo, a revisão da legislação trabalhista, com a alteração da estrutura sindical e a modificação da Justiça do Trabalho. E qual foi a reação do sindicalismo petista (e das demais centrais) contra a ofensiva neoliberal que propugnava a mutilação e subtração de direitos sociais?
De resistência e de conservação dos fundamentos corporativos da CLT, postos em questão pela competição desumana e rude do mercado. Sem propor alternativas, agarrou-se à defesa do velho corporativismo. As vantagens deste se converteram numa espécie de canto de sereia e passaram a ser desfrutadas pragmaticamente, de maneira oportuna e utilitária, não só aos desígnios sindicais, mas também aos partidários.
Bandeiras de luta do passado recente foram negligenciadas; aceitou-se o fim da tutela, mas abdicou-se da emancipação sem reservas; adequou-se aos princípios da unicidade e da verticalização e adotou-se o imposto sindical como útil e necessário.
Ultimada sua conversão definitiva ao “mundo dos interesses” — que coincide com a metamorfose petista —, a CUT pôde então aventurar-se a lances mais ousados, como à “governança corporativa”, ao sindicalismo empreendedor, ao mercado financeiro, à gestão dos fundos de pensão, etc. Estavam criadas as condições necessárias para sua concertação com as vertentes ministerialistas e com o sindicalismo de resultados.
Selava-se aí um pacto tácito de unidade e ação entre capital e trabalho, novo e velho sindicalismo, público e privado, patrimonialismo e corporativismo.
Na sequência e já elevado ao poder central da República, o PT viria a redimir o “Estado varguista”, sua estrutura e sua forma de se relacionar com a sociedade civil.
Reviveu até mesmo, em muitos aspectos, o projeto nacional-desenvolvimentista, agora já anacrônico. O mesmo PT e seu braço sindical, a CUT, que nasceram propugnando o encorpamento da sociedade civil e sua contrapartida, a contração dos poderes estatais, quando governo fez o Estado avocar “a sociedade civil para si” (como mostrou L. W. Vianna), tal qual fizera Vargas no Estado Novo. As centrais sindicais, tornadas correias de transmissão do “Estado lulista” e indistintas entre si — doravante legitimadas pela CLT —, passaram a confraternizar no Ministério do Trabalho, repartindo poderes e verbas, abocanhando 10% do imposto sindical e gerindo recursos do FAT, do FGTS, de fundos de pensão, etc.
Se nossa compreensão é factível, esse congraçamento das centrais sindicais no âmago do poder, ao sujeitá-las ao oficialismo político-eleitoral e adequá-las à (re)estatização das organizações dos trabalhadores, tem implicações preocupantes.
Cria possibilidades reais de conduzir à obstrução dos movimentos de um setor primordial da sociedade civil e, mesmo, à sua inação. Com uma agravante: a subalternização de todos os que, para sobreviver, dependem da venda da força de trabalho.
E pior: em detrimento dos valores, das instituições e da práxis democrática.
(*) É professor titular de Sociologia da Unesp
Um fato causou surpresa nas últimas eleições presidenciais: o apoio quase unânime das centrais sindicais à candidata do PT. De procedências, concepções e práticas muito diversas, sempre às turras e trocando impropérios, as centrais travaram, durante longo tempo, competição pelo domínio do movimento sindical. Nos últimos anos, no entanto, deram de andar de braços dados, afinados e em estranha harmonia.
Como explicar a inusitada reviravolta e a misteriosa unanimidade?
Um recuo, não muito distante, na História, pode contribuir, para o entendimento dessa aliança, suas motivações, conveniências e seus interesses.
Nos anos 1970/80, algumas teses acadêmicas sobre o sindicalismo tornaram-se correntes. Difundidas pela mídia e por outras instituições da sociedade civil, penetraram e disseminaram-se no movimento operário e sindical e converteram-se em hegemônicas — estiveram mesmo na base e na origem da reordenação do movimento sindical e da esquerda naqueles anos. Afirmavam, em linhas gerais, que o movimento operário/sindical até 1930 fora um movimento combativo, autônomo e revolucionário e, após essa data, teria sido derrotado e subordinado ao Estado; convertido em organismo burocratizado, de colaboração, passou a ser manipulado pelo populismo. Essa situação teria perdurado até 1978/80, quando o autêntico movimento operário/sindical, no ABC paulista, teria iniciado sua ressurreição.
O “novo sindicalismo”, como passou a ser denominado, contestava desde a estrutura sindical (unicidade, verticalização, imposto sindical) até a intervenção e mediação do Estado nas relações entre capital e trabalho. A luta por autonomia e liberdade sindical confundiu-se com o combate ao Estado, à defesa da negociação direta entre patrões e trabalhadores e ao livre-arbítrio do mercado na compra e venda da força de trabalho.
A principal liderança do “novo sindicalismo” (Lula) chegou mesmo a afirmar que a Consolidação das Leis do Trabalho ( CLT) era o “AI-5 da classe operária”.
Aquelas análises e teorias forneceram lastro intelectual e suporte ideológico ao “novo sindicalismo”, ao serem tornadas — pela mídia, pela Igreja, pelos intelectuais, sindicatos, partidos e outros setores da sociedade civil — ideias-força.
É fato que o Partido dos Trabalhadores (PT) e seu braço sindical, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), gerados na luta contra a política trabalhista da ditadura, fizeram sua aparição pública combatendo o intervencionismo estatal, identificado como autoritário.
Na passagem dos anos 1980/90, uma série de fenômenos e acontecimentos alteraria tal atitude. O conjunto de transformações, que já estava em curso em outras partes do mundo, passou a incidir de modo mais direto no Brasil e alterou substancialmente as relações de trabalho, com repercussões intensas e extensas na forma de organização sindical e política e nos movimentos reivindicativos dos trabalhadores.
Foi quando se colocou a questão da reforma do Estado e, no seu bojo, a revisão da legislação trabalhista, com a alteração da estrutura sindical e a modificação da Justiça do Trabalho. E qual foi a reação do sindicalismo petista (e das demais centrais) contra a ofensiva neoliberal que propugnava a mutilação e subtração de direitos sociais?
De resistência e de conservação dos fundamentos corporativos da CLT, postos em questão pela competição desumana e rude do mercado. Sem propor alternativas, agarrou-se à defesa do velho corporativismo. As vantagens deste se converteram numa espécie de canto de sereia e passaram a ser desfrutadas pragmaticamente, de maneira oportuna e utilitária, não só aos desígnios sindicais, mas também aos partidários.
Bandeiras de luta do passado recente foram negligenciadas; aceitou-se o fim da tutela, mas abdicou-se da emancipação sem reservas; adequou-se aos princípios da unicidade e da verticalização e adotou-se o imposto sindical como útil e necessário.
Ultimada sua conversão definitiva ao “mundo dos interesses” — que coincide com a metamorfose petista —, a CUT pôde então aventurar-se a lances mais ousados, como à “governança corporativa”, ao sindicalismo empreendedor, ao mercado financeiro, à gestão dos fundos de pensão, etc. Estavam criadas as condições necessárias para sua concertação com as vertentes ministerialistas e com o sindicalismo de resultados.
Selava-se aí um pacto tácito de unidade e ação entre capital e trabalho, novo e velho sindicalismo, público e privado, patrimonialismo e corporativismo.
Na sequência e já elevado ao poder central da República, o PT viria a redimir o “Estado varguista”, sua estrutura e sua forma de se relacionar com a sociedade civil.
Reviveu até mesmo, em muitos aspectos, o projeto nacional-desenvolvimentista, agora já anacrônico. O mesmo PT e seu braço sindical, a CUT, que nasceram propugnando o encorpamento da sociedade civil e sua contrapartida, a contração dos poderes estatais, quando governo fez o Estado avocar “a sociedade civil para si” (como mostrou L. W. Vianna), tal qual fizera Vargas no Estado Novo. As centrais sindicais, tornadas correias de transmissão do “Estado lulista” e indistintas entre si — doravante legitimadas pela CLT —, passaram a confraternizar no Ministério do Trabalho, repartindo poderes e verbas, abocanhando 10% do imposto sindical e gerindo recursos do FAT, do FGTS, de fundos de pensão, etc.
Se nossa compreensão é factível, esse congraçamento das centrais sindicais no âmago do poder, ao sujeitá-las ao oficialismo político-eleitoral e adequá-las à (re)estatização das organizações dos trabalhadores, tem implicações preocupantes.
Cria possibilidades reais de conduzir à obstrução dos movimentos de um setor primordial da sociedade civil e, mesmo, à sua inação. Com uma agravante: a subalternização de todos os que, para sobreviver, dependem da venda da força de trabalho.
E pior: em detrimento dos valores, das instituições e da práxis democrática.
(*) É professor titular de Sociologia da Unesp
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