terça-feira, 22 de julho de 2014

Crível, bem focada e previsível

Antônio Delfim Netto (*) 

Uma das características da sociedade civilizada é que ela deve internalizar uma distribuição moralmente aceitável do que foi produzido. Isso favorece a coesão e a estabilidade sociais e gera um ambiente de mobilidade criadora. É preciso construir instituições econômicas que ajudem a diminuir a tendência à concentração de renda e do patrimônio que é promovida pelo livre funcionamento dos mercados, mesmo quando absolutamente competitivos. E mais. É preciso construir instituições políticas, que controlem os mercados que propiciam práticas monopolísticas e criminalizem o capitalismo de "compadres" ou de "partidos". Tanto nos regimes democráticos como nos autoritários, eles são a fonte da corrupção que leva à desestabilização social.

Reconhecer as virtudes inegáveis da organização da produção através dos mercados, para obter ao mesmo tempo a plena liberdade de escolha dos cidadãos e uma certa eficiência produtiva, não obriga à aceitação que ela produz, simultaneamente, uma "justa" e irrecorrível distribuição de renda (isto é, do que foi produzido). 
A organização dos trabalhadores e a conquista do sufrágio universal entre o fim do século XIX e o início do século XX reduziram as diferenças de poder entre o capital e o trabalho e deixaram claro que a distribuição do produzido é um problema político, que tem implicações econômicas de longo prazo. É hoje claro que se trata de uma escolha ideológica do grupo que detém o poder político. 

Para simplificar podemos dividi-los em dois: 
1) o que acredita num Estado com poder limitado, que não pode determinar a evolução da distribuição de renda. Ela é produto da propriedade privada que é garantia da liberdade individual, produz a eficiência produtiva pela proteção aos "mercados" e gera a meritocracia na distribuição da renda; 
2) o que acredita que a produção é feita por todos e, portanto, deve ser repartida igualmente, sem preocupar-se com a liberdade individual. 

São duas visões antagônicas que, na melhor das hipóteses, podem ser relativamente conciliadas pela aceitação de uma lógica consequencialista. 
Por exemplo: qual delas é mais favorável a um crescimento robusto com uma distribuição de renda que cresça monotonicamente para um nível moralmente aceitável? 
Isso produziria uma espécie de satisfação com a vida crescente por parte dos cidadãos. Trata-se de uma questão de fato, que só pode ser resolvida empiricamente. 

O problema é que sabemos muito pouco a respeito dos efeitos recíprocos do crescimento apoiado na organização dos mercados e o nível de "bem-estar" (uma espécie de "felicidade" da população) que produz cada combinação: velocidade do crescimento versus velocidade da redução da desigualdade. 
Não se conhece a "preferência" da sociedade, isto é, quanto ela está disposta a ceder de crescimento (de investimento que reduz o "bem-estar" ao longo do prazo) por conta de uma diminuição da desigualdade (que aumenta o "bem-estar" no curto prazo). 
O raciocínio implica uma hipótese discutível, porque um nível de desigualdade menor produz mais coesão social e, eventualmente, pode aumentar a eficiência produtiva. 

O gráfico abaixo mostra a "essência" do processo econômico e mostra a relação conflituosa entre crescimento e distribuição. 
A mão de obra (L) opera o estoque de capital e (K) e produz o PIB . 
O produzido só pode ter dois destinos: ser distribuído (consumido) ou ser investido e aumentar o estoque de capital. É claro que quando aumenta a distribuição (C) diminui o investimento (I). O fluxo de distribuição (C) para a mão de obra (L) determina o nível de "bem-estar". O fluxo do investimento (I) para o estoque de capital (K) determina a taxa de crescimento. Quando aumenta o PIB (pelo aumento simultâneo da mão de obra e do estoque de capital), pode haver ao mesmo tempo crescimento e a distribuição. 
Quando diminui a taxa de aumento da mão de obra, a única forma de crescer é aumentar a sua produtividade pela ampliação do estoque de capital.
A revolução demográfica que vivemos condicionará, assim, toda a nossa política social e econômica futura. 

Entre 2003 e 2010, tivemos um bônus do exterior (a melhora das relações de troca), que aumentou o PIB e possibilitou a distribuição sem comprometer o crescimento, como está sugerido no gráfico. Mas isso terminou em 2011, o que ajuda a entender parte da redução dos últimos quatro anos do crescimento. A situação hoje é outra. 

Precisamos de uma crível, bem focada e previsível política econômica e social que, sem nos levar à regressão distributiva, dê ênfase aos investimentos públicos e privados para acelerar o crescimento, condição necessária para continuar a construção da sociedade civilizada preconizada pela Constituição de 1988. 

(*) É professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. E-mail: contatodelfimnetto@terra.com.br

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