segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Marcador impiedoso

Antero Greco para O Estado de S.Paulo

Jogador de futebol costuma temer as contusões e as travas das chuteiras de adversários desleais. Nessa ordem. Mas o marcador nocivo, implacável e perene é o tempo. Um dia alcança a todos, sejam craques, sejam cabeças de bagre. Para alguns, chega cedo, sem aviso; com outros, tem faíscas de benevolência e lhes permite carreira longeva. Variável a duração, imutável o final. Num ponto prevalece consenso: difícil de fato é detectar o momento de dobrar-se à força do algoz. Então vem decisão dolorida e solitária.
Ronaldo travou batalhas obstinadas contra esse zagueiro sem rosto, porém feroz. E não é de agora. Conseguiu derrotá-lo em três ocasiões decisivas - em novembro de 1999, em abril de 2000, em fevereiro de 2008, nos episódios mais contundentes de sua carreira. Fora outras batalhas menores. Em todas, venceu, e sempre a contar com o vigor milagroso da juventude. Ou seja, de certa forma jogou com as armas do carrasco. O corpo, apesar de castigado e colocado à prova, reagia. O talento extraordinário se encarregava do resto.

Cansou de vez, jogou a toalha e decidiu parar, como você pode acompanhar no relato minucioso que Daniel Piza faz nesta edição. Os episódios recentes, em que se viu como um dos alvos do desencanto da torcida, influíram, ou no mínimo o fizeram pensar. A forma traumatizante como seu amigo Roberto Carlos deixou o Parque São Jorge também contribuiu para antecipar a aposentadoria. O físico que não responde mais às exigências de um atleta profissional de sua envergadura e importância foi o juiz a apresentar o veredicto irrecorrível. O tempo enfim mostrou seu poder de devastação.

A hora de parar é muito íntima, pessoal e merece respeito - escrevi isso em diversas oportunidades. No caso de Ronaldo, lembro que, quando decidiu encarar o desafio de atuar pelo Corinthians, após romper com o Milan, se colocava em dúvida se vingaria em um clube complicado, exigente, com pressão popular acima daquela a que estava acostumado. Afirmei aqui que confiava em seu bom senso e autoestima, pois ele agiria como seu maior crítico. Estava convencido de que não jogaria no ralo carreira incomum.

Quase o fez. A insistência em prosseguir era-lhe direito sacrossanto. As evidências, no entanto, apontavam para direção oposta. Desde a eliminação alvinegra na Taça Libertadores de 2010, nos duelos com o Flamengo, sumiu a magia de Ronaldo. Sem me meter a enveredar por psicologia de botequim, se juntaram a tristeza pela impotência de ajudar o time, no ano do centenário, e a decepção por ver-se descartado por Dunga para a Copa da África. Dois golpes suficientes para minar resistências.

Ronaldo logo em seguida ficou longos períodos fora de cena, a recuperar-se de renitentes dores musculares. Nesse meio-tempo, o Corinthians viu também fugir-lhe o título brasileiro e fechava de mãos vazias um período especial em sua vida. O consolo foi a pré-Libertadores. O ídolo, assim como seus companheiros e torcida, se agarrou a essa última chance. Deu no que deu.

Todos falharam contra o Tolima, só que lhe coube cobrança superior à dos demais. Não era justo com sua biografia receber pedradas do mesmo bando de loucos que até ontem o idolatrava. Certo que a paixão tem extremos, Ronaldo é calejado e muitas vezes tirou de letra situações semelhantes. Mesmo assim, astro de sua grandeza não pode ser execrado - sem negar ao torcedor a liberdade da cobrança.

Também não merecia as chacotas. As gozações são essência do futebol, o riso faz bem à saúde e se tiram lições de paródias e imitações. Só que pegaram pesado, tão pesado quanto seu físico atual. Ronaldo não poderia virar sombra do fenômeno, nem precisava disso. Sua história fala por si.

Retira-se dos gramados, talvez não da maneira como imaginou. Paciência. Mas entra para a história como um dos grandes do esporte. Craque nasceu, craque se mostrou por onde desfilou sua classe, craque será sempre. As imagens estão aí para fazer com que ninguém, nunca, seja sufocado pela saudade de suas proezas. Como amante do futebol, só me resta fazer reverência a um dos reis da bola.

(*) Jornalista esportivo e comentarista da ESPN Brasil

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