Bellini Tavares de Lima Neto (*)
(Texto de 07/05/1999)
A originalidade nunca foi meu forte. Por isso, me sinto a vontade para dizer que fui um apaixonado por futebol. Eu e o resto do mundo, naturalmente.
Em 1970, para a Copa do Mundo do México, a FIFA resolveu introduzir a prática dos cartões de punição. Sim, são os famosos cartões amarelo e vermelho que ultrapassaram as fronteiras dos campos e ganharam a sociedade. “Fulano acabou de levar um amarelo da mulher” ou “Sicrano levou o vermelho do chefe”.
Os cartões foram a maneira que a FIFA encontrou para superar a barreira dos idiomas para poder repreender, advertir, punir os atletas. E essa necessidade surgiu por conta do aumento desenfreado da violência no esporte, um dos muitos reflexos da violência que se instalou em toda a sociedade.
Pois, de repente, me volta à lembrança um episódio ocorrido durante a copa do Chile em 1962 e que, a meu ver, deveria estar colocado em destaque em algum museu de recordações destinado aqueles que apreciam o esporte e o gênero humano.
Era a segunda partida da seleção brasileira naquela copa e a primeira jogada entre a seleção do Brasil e da Checoslováquia, que ainda existia como país. É que essas duas seleções acabaram se encontrando novamente para fazer a grande final que nos deu o bicampeonato mundial de futebol. O primeiro jogo do Brasil foi contra o México e ganhamos por dois a zero com um gol espetacular daquele que era a grande sensação mundial do futebol, o jovem Pelé. Veio o segundo jogo, contra a seleção da Checoslováquia. Nesse jogo o Rei Pelé foi vitimado por uma distensão da virilha que o acabou afastando dos campos pelo resto daquele ano. O jogo terminou empatado em zero a zero.
Naqueles idos de 1962 ainda não dispúnhamos de transmissão direta de TV, mas, pela primeira vez em nossa história tínhamos a chance de assistir a algo inteiramente novo: o videotape. Detalhe é que o videotape só chegava dois dias depois dos jogos, trazido de avião do Chile para ser exibido pela extinta TV Tupi ,Canal 3 (aqui em São Paulo) com narração de Walter Abrahão e comentários do polêmico Geraldo Bretas.
Depois de ter meu coração juvenil de 14 anos maltratado com aquele sombrio 0 x 0 acompanhado na transmissão pelo rádio, lá estava eu, duas noites depois, como televizinho, enternecendo meus olhos igualmente juvenis e maravilhados com aquele avanço tecnológico e com as jogadas dos craques da minha infância e adolescência, aqueles mesmos que eu abrigava nos álbuns de figurinhas da época.
O Rei se contunde, para nossa agonia e sofrimento. No entanto, como ainda não havia a chamada Regra 3 (nem Toquinho e Vinicius pensavam em consagrá-la), Pelé continuou em campo, lá pelas laterais do campo, fazendo número. Num determinado momento, Zito lhe estica uma bola e o Rei corre, arrastando a perna ferida pela distensão.
Quando garoto eu sofri um arremedo de distensão e senti uma dor indescritível.
Posso imaginar o sofrimento do Rei naquele momento. E não só o sofrimento físico, mas a imensa solidão que ele deve ter experimentado ao se sentir alijado de sua segunda copa do mundo, exatamente depois de haver estreado contra o México marcando um gol em que ele carregou a bola por quase toda a defesa adversária.
Exatamente ele, o portador de todas as nossas esperanças, o porta-estandarte do nosso orgulho nacional, a nossa chance de fazer o mundo se curvar diante de nossa grandeza.
Pelé corre tentando reter a bola e no seu encalço sai um checo que se chamava Josef Masopust. Pelé só consegue dominar a bola quase na linha lateral e fica de costas para o campo tentando dar-lhe um destino. Nesse momento se aproxima Masopust.
No entanto, em vez de agredi-lo para recuperar a posse da bola, se limita a se postar há cerca de meio metro, respeitoso, sentindo em si mesmo todo o drama que aquele Deus Negro deveria estar sentindo.
Foi isso o que fez Masopust.
Mostrou ao mundo, naquela fração de segundos, todo o significado profundo das palavras sensibilidade, respeito, dignidade e tantas outras características que dignificam o homem ou o denigrem se, ao contrario, lhe faltam.
Por um instante aqueles dois homens de origens e culturas tão diferentes pareciam irmanados por sentimentos tais e tão sublimes que, se um dia trazidos à luz e à consciência e incorporados por todos nós, esses sentimentos certamente poriam fim a todas as divergências da raça humana e inaugurariam o paraíso que tantos já buscaram na Terra.
Meus olhos de hoje ainda podem ver, meus ouvidos de hoje ainda podem ouvir, a cena e o silêncio em que mergulhou o estádio, aguardando o desfecho daquela cena inusitada. Pelé, então, da mesma estatura moral que esse inesquecível Masopust, limitou-se a empurrar a bola para além da linha lateral, entregando-a como prêmio merecido aquele que poderia ter sido um algoz, mas foi um verdadeiro anjo protetor.
O estádio explodiu em palmas e eu, até hoje, revejo a cena que marcou minha memória e meu coração para sempre e me emociono da mesma forma que me emocionei naquele instante.
Que pena que apenas quatro anos depois, na Copa da Inglaterra, um desvairado Vicente atacava o mesmo Rei ferido até deixá-lo jogado no campo e ser retirado nas costas do saudoso Mario Américo. Que pena que o chamado espírito olímpico, que era um espírito de luz, acabou se transformando em espírito obsessor.
(*) Advogado, avô e morador em São Bernardo (SP)
(Texto de 07/05/1999)
A originalidade nunca foi meu forte. Por isso, me sinto a vontade para dizer que fui um apaixonado por futebol. Eu e o resto do mundo, naturalmente.
Em 1970, para a Copa do Mundo do México, a FIFA resolveu introduzir a prática dos cartões de punição. Sim, são os famosos cartões amarelo e vermelho que ultrapassaram as fronteiras dos campos e ganharam a sociedade. “Fulano acabou de levar um amarelo da mulher” ou “Sicrano levou o vermelho do chefe”.
Os cartões foram a maneira que a FIFA encontrou para superar a barreira dos idiomas para poder repreender, advertir, punir os atletas. E essa necessidade surgiu por conta do aumento desenfreado da violência no esporte, um dos muitos reflexos da violência que se instalou em toda a sociedade.
Pois, de repente, me volta à lembrança um episódio ocorrido durante a copa do Chile em 1962 e que, a meu ver, deveria estar colocado em destaque em algum museu de recordações destinado aqueles que apreciam o esporte e o gênero humano.
Era a segunda partida da seleção brasileira naquela copa e a primeira jogada entre a seleção do Brasil e da Checoslováquia, que ainda existia como país. É que essas duas seleções acabaram se encontrando novamente para fazer a grande final que nos deu o bicampeonato mundial de futebol. O primeiro jogo do Brasil foi contra o México e ganhamos por dois a zero com um gol espetacular daquele que era a grande sensação mundial do futebol, o jovem Pelé. Veio o segundo jogo, contra a seleção da Checoslováquia. Nesse jogo o Rei Pelé foi vitimado por uma distensão da virilha que o acabou afastando dos campos pelo resto daquele ano. O jogo terminou empatado em zero a zero.
Naqueles idos de 1962 ainda não dispúnhamos de transmissão direta de TV, mas, pela primeira vez em nossa história tínhamos a chance de assistir a algo inteiramente novo: o videotape. Detalhe é que o videotape só chegava dois dias depois dos jogos, trazido de avião do Chile para ser exibido pela extinta TV Tupi ,Canal 3 (aqui em São Paulo) com narração de Walter Abrahão e comentários do polêmico Geraldo Bretas.
Depois de ter meu coração juvenil de 14 anos maltratado com aquele sombrio 0 x 0 acompanhado na transmissão pelo rádio, lá estava eu, duas noites depois, como televizinho, enternecendo meus olhos igualmente juvenis e maravilhados com aquele avanço tecnológico e com as jogadas dos craques da minha infância e adolescência, aqueles mesmos que eu abrigava nos álbuns de figurinhas da época.
O Rei se contunde, para nossa agonia e sofrimento. No entanto, como ainda não havia a chamada Regra 3 (nem Toquinho e Vinicius pensavam em consagrá-la), Pelé continuou em campo, lá pelas laterais do campo, fazendo número. Num determinado momento, Zito lhe estica uma bola e o Rei corre, arrastando a perna ferida pela distensão.
Quando garoto eu sofri um arremedo de distensão e senti uma dor indescritível.
Posso imaginar o sofrimento do Rei naquele momento. E não só o sofrimento físico, mas a imensa solidão que ele deve ter experimentado ao se sentir alijado de sua segunda copa do mundo, exatamente depois de haver estreado contra o México marcando um gol em que ele carregou a bola por quase toda a defesa adversária.
Exatamente ele, o portador de todas as nossas esperanças, o porta-estandarte do nosso orgulho nacional, a nossa chance de fazer o mundo se curvar diante de nossa grandeza.
Pelé corre tentando reter a bola e no seu encalço sai um checo que se chamava Josef Masopust. Pelé só consegue dominar a bola quase na linha lateral e fica de costas para o campo tentando dar-lhe um destino. Nesse momento se aproxima Masopust.
No entanto, em vez de agredi-lo para recuperar a posse da bola, se limita a se postar há cerca de meio metro, respeitoso, sentindo em si mesmo todo o drama que aquele Deus Negro deveria estar sentindo.
Foi isso o que fez Masopust.
Mostrou ao mundo, naquela fração de segundos, todo o significado profundo das palavras sensibilidade, respeito, dignidade e tantas outras características que dignificam o homem ou o denigrem se, ao contrario, lhe faltam.
Por um instante aqueles dois homens de origens e culturas tão diferentes pareciam irmanados por sentimentos tais e tão sublimes que, se um dia trazidos à luz e à consciência e incorporados por todos nós, esses sentimentos certamente poriam fim a todas as divergências da raça humana e inaugurariam o paraíso que tantos já buscaram na Terra.
Meus olhos de hoje ainda podem ver, meus ouvidos de hoje ainda podem ouvir, a cena e o silêncio em que mergulhou o estádio, aguardando o desfecho daquela cena inusitada. Pelé, então, da mesma estatura moral que esse inesquecível Masopust, limitou-se a empurrar a bola para além da linha lateral, entregando-a como prêmio merecido aquele que poderia ter sido um algoz, mas foi um verdadeiro anjo protetor.
O estádio explodiu em palmas e eu, até hoje, revejo a cena que marcou minha memória e meu coração para sempre e me emociono da mesma forma que me emocionei naquele instante.
Que pena que apenas quatro anos depois, na Copa da Inglaterra, um desvairado Vicente atacava o mesmo Rei ferido até deixá-lo jogado no campo e ser retirado nas costas do saudoso Mario Américo. Que pena que o chamado espírito olímpico, que era um espírito de luz, acabou se transformando em espírito obsessor.
(*) Advogado, avô e morador em São Bernardo (SP)
Nenhum comentário:
Postar um comentário