quinta-feira, 17 de julho de 2014

Era para perder

Beth Veloso (*) 

É muito fácil agora cuspir no prato e dizer que tudo não passou de ilusão. Mas parece mesmo mentira perder com seis gols de diferença. Parece mentira… mas ficou mais fácil perder assim. O mais incrível é que um dos jogadores brasileiros não tenha pegado a bola com a mão e se voltado para o vestiário. Fim de jogo. Sem apito. Ou simplesmente, dar um tapa no ar e virar as costas. Brincadeira. 
A vitória é tão sobrenatural que os oráculos de plantão já invocam as forças do mal. 
É a incapacidade do povo brasileiro de encarar a verdade. De ter clareza. 
Não importa o tamanho da televisão, o número de polegadas, o brasileiro simplesmente não enxerga. Prefere amarrar o coração na chuteira. É claro que ele ficará machucado. 
É duro perder para a razão. É duro perder para a frieza da mecânica, para a eficiência da técnica, para os rigores da disciplina. 

Mais duro ainda é ver os alemães se esbaldando nas praias e jogando um belíssimo futebol. É duro ver o charme brasileiro a serviço dos maiores algozes que o Brasil já teve na história das Copas do Mundo. 
Nem com tantos bons tratos e mimos os alemães tiveram compaixão pelo Brasil. 
Assim é a dinâmica na vida real: gentilezas, gentilezas, negócios à parte. 
Em campo, é para valer. Os alemães roubaram não apenas a Copa do Mundo do Brasil, mas a nossa exclusividade macunaíma: a capacidade de fazer do trabalho uma diversão. 
Até agora, só o brasileiro se achava o genuíno malandro. 

Sim, a Alemanha divertiu-se às nossas custas. E como custou caro! Bilhões de reais? 
Não, bilhões em atendimentos em hospitais, creches, estradas e bilhões em imagem pública desgastada por denúncias de corrupção às custas da nossa paixão. 

Tentei não me envolver com a Copa. Era um investimento de altíssimo risco. 
Colocar o coração no pé! Tá difícil de acreditar até em duende nos últimos tempos… imagina numa seleção na qual eu não sabia o nome dos jogadores. 
Uma seleção filha de um esquema em que não prosperam os melhores, mas os escolhidos pelos cartolas do futebol, com base em critérios como favoritismo, benesses e mais denúncias de corrupção. 

Na minha ignorância futebolística, no meu ceticismo político, na minha assepsia emocional budista, aprendi a ver as coisas como elas são… e, do pouco que vi, a seleção brasileira não tinha o sincronismo que vi no balé alemão, em toda a sua elegância. 
Sem a idolatria dos “Neymares”, eles realmente não precisam de um cristo redentor das mazelas de seus políticos, da falta de seriedade do seu povo e da superficialidade da alma brasileira, onde tudo acaba em festa e todo mundo está esperando para levar a sua vantagem. 

Aqui é assim: não fosse pela fé, o Brasil ganharia pela garra… afinal, ô povo sofrido! 
Não fosse pelo instinto de sobrevivência, o Brasil ganharia pela sua torcida, pela sua pátria. Não fosse pela sua grandiosidade numérica, levaríamos pelas cifras, ou cifrões… 
No fundo, a gente achava que a lógica seria: pagou, levou! 

O brasileiro realmente se acha especial! Se considera fraternal e vemos na televisão uma torcida branca como a alemã. É assim nas propagandas de fraldas descartáveis e é assim no eterno complexo de colonizado do brasileiro. Os milhares de policiais destacados para garantir a “passividade” do brasileiro impressionaram mais – ou tanto – quanto os bilhões gastos em estádios que irão se esvaziar aos poucos nas violentas lutas de torcidas. 

Nem todo o romantismo do mundo vai apagar da nossa memória a ideia de que não tínhamos uma seleção e de que toda a Copa do Mundo estava pendurada na chuteira de um jogador: Neymar! Era realmente desigual! A desculpa agora não vai colar! 
É assim que o Brasil funciona: na base dos salvadores, dos redentores, dos deuses encarnados. Ainda somos um povo monoteísta, mas os deuses são mortais… se machucam… às vezes irreversivelmente… A verdade é que a nossa máquina não funciona… os nossos portos não funcionam… a nossa saúde não funciona… a nossa educação não funciona… pelo menos o futebol haveria funcionar, não???!!!!

A Copa Fifa 2014 não foi nosso prêmio de consolação, Brasil! 
A gente vai ter de arranjar outro troféu dos perdedores nos campos da vida! 
O depoimento de um enfermeiro do Samu mostra que, um pouco além do estádio, é de tragédia, e não de espetáculo, que é feito o dia-a-dia do brasileiro. 
A gente enfrenta uma Alemanha por dia, uma máquina de matar. 
E muitos brasileiros não sobrevivem. A maioria chora. Chora muito. 
Chora ao encostar a cabeça no travesseiro e sentir-se totalmente órfão, numa Nação de milhões de brasileiros “gentis”… até que um ladrão pule pela sua janela ou tente tomar o celular do seu filho na volta da escola. Humilhante é a forma como o brasileiro é tratado por seus governantes. Humilhante é a forma como o brasileiro encara a realidade. Humilhante é a educação que o brasileiro recebe, os salários que pagamos aos professores. Perder para a Alemanha não é nada diante disso! Até nos delicia, por um lado, porque perdemos para brancos, altivos e – agora – charmosos e felizes colonizadores. 
Até nos conforta! Quem sabe não podemos dizer: obrigada, Alemanha! 
Pior se fosse a Argentina! 

No gramado da ilha da fantasia criada pelos oportunistas de plantão – entre eles políticos, cartolas e empreiteiras (quem mais manda neste país?) -, o príncipe foi comido pelo dragão e o reino desmoronou. Mas não tem problema não. 
Deus é brasileiro, ainda que a vitória seja da eficiência sobre a bagunça. 
Da técnica sobre a crendice. Da força sobre o improviso. Quem venceu foi a realidade. 
O circo Fifa mostrou um Brasil que não existe: lindo, branco e encantado. 
Só esqueceram de combinar o final com os adversários. Fim. 

(*) Jornalista, foi uma das ganhadoras do Prêmio CNT de Jornalismo pela Campanha Paz no Trânsito, do jornal Correio Braziliense.

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