quinta-feira, 17 de julho de 2014

O salmo de Wagner Moura

Frei Betto (*) 

Diante da censura da Arquidiocese do Rio ao uso da imagem do Cristo Redentor no filme “Inútil paisagem”, de José Padilha, fico em posição inusitada: sou homem de Igreja; sou contra censuras a obras de arte; e sou companheiro de Wagner Moura em encontros de oração e meditação, dos quais participam artistas e jornalistas. 

Por que a fala do personagem do Wagner seria ofensiva? 
A meu ver, ela não ofende Jesus; ao contrário, reconhece que a imagem em placas de pedra-sabão é expressão da presença invisível dele, a quem se dirige inconformado. 

Encaro a fala do personagem como a do salmista que protesta contra Javé, acusando-o de indiferença e omissão: “Ó Deus, não fiques calado, não fiques mudo e inerte, ó Deus!” (Salmo 83). “Por que me rejeitas, Javé, e escondes tua face longe de mim?” (Salmo 88). 

O personagem de Wagner Moura, magoado porque Cristo não atendeu às preces concernentes à sua relação com a personagem Clara, suplica que o Redentor saia da imobilidade pétrea e vá “lá embaixo” e interfira para que haja mais amor, a polícia não atue como assassina, evite as inundações que afogam vidas, propicie escolas a todas as crianças. 

Na fala de Wagner há uma crítica teológica pertinente: é um erro nós, cristãos, esperarmos que Deus atue em nosso lugar. Oramos para que ele nos infunda fé, esperança e amor, para que sejamos capazes de agir como Jesus agiu. 

Deus jamais é tapa-buraco de nossa omissão. 
Ele age através de nós, que somos seus “templos vivos”, segundo Paulo na Carta aos Coríntios (3, 16-17). Sonho com uma Igreja que censure, sim, governos e poderosos que, por suas decisões, apoiam policiais torturadores e assassinos, sonegam educação de qualidade às crianças pobres, e condenam milhares de “templos vivos” à miséria, à exclusão, a uma vida ingrata e infeliz. 

Uma criação artística não deve sofrer censura, exceto a que procede do gosto do público. 

Equivoca-se quem sobe ao Corcovado na expectativa de encontrar Cristo. 
Ele não está naquele bloco de granito. Está “lá embaixo”, e quem “não tem amor” jamais será capaz de encontrá-lo onde ele mesmo disse estar: em quem tem fome, sede, está enfermo, é imigrante ou carente de bens tão essenciais como a roupa do corpo (Mateus 25, 31-46). 

O Antigo Testamento relata como os hebreus insistiam em adorar Javé através da veneração a um bezerro de ouro ou frondoso carvalho. 
Procedimento condenado pelos profetas como idólatra. 
Será que Deus exigia dos hebreus alto grau de abstração, a ponto de prescindir de qualquer referência sensível ao prestar-lhe culto? 
Ao contrário, Javé queria apenas que o vissem no próximo. 

O Cristo Redentor é um monumento público, como a Estátua da Liberdade e a Torre Eiffel. Embora seja patrimônio da Arquidiocese, é símbolo da Cidade Maravilhosa e foi eleito uma das sete maravilhas do mundo moderno. 
Seu valor simbólico ultrapassa-lhe o estatuto patrimonial. 
Tombado desde 1937 pelo Iphan, é considerado pela Unesco patrimônio mundial, por se situar no Rio, eleita, em 2012, cidade Patrimônio Cultural da Humanidade. 

A fala censurada repete, noutras palavras, o que já está dito por artistas como Chico Buarque em “Subúrbio” (“Lá tem Jesus / E está de costas”); e Zélia Duncan em “Braços cruzados” (“Eu quero menos abandono, mais cuidado/Cristo Redentor/Eu vi seus braços cruzados, tudo é ilusão”). 

O papa Bento XVI, ao visitar Auschwitz em 2010, exclamou:
“Por que, Senhor, permaneceste em silêncio? Onde estava Deus nesses dias?” 
O próprio Jesus se queixou de Deus: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Marcos 15, 34). 

Queixar-se a Deus é uma forma de oração. 

(*) É escritor e religioso dominicano

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