Frei Betto (*)
Diante da censura da Arquidiocese do Rio ao uso da imagem do Cristo Redentor no filme “Inútil paisagem”, de José Padilha, fico em posição inusitada: sou homem de Igreja; sou contra censuras a obras de arte; e sou companheiro de Wagner Moura em encontros de oração e meditação, dos quais participam artistas e jornalistas.
Por que a fala do personagem do Wagner seria ofensiva?
A meu ver, ela não ofende Jesus; ao contrário, reconhece que a imagem em placas de pedra-sabão é expressão da presença invisível dele, a quem se dirige inconformado.
Encaro a fala do personagem como a do salmista que protesta contra Javé, acusando-o de indiferença e omissão: “Ó Deus, não fiques calado, não fiques mudo e inerte, ó Deus!” (Salmo 83). “Por que me rejeitas, Javé, e escondes tua face longe de mim?” (Salmo 88).
O personagem de Wagner Moura, magoado porque Cristo não atendeu às preces concernentes à sua relação com a personagem Clara, suplica que o Redentor saia da imobilidade pétrea e vá “lá embaixo” e interfira para que haja mais amor, a polícia não atue como assassina, evite as inundações que afogam vidas, propicie escolas a todas as crianças.
Na fala de Wagner há uma crítica teológica pertinente: é um erro nós, cristãos, esperarmos que Deus atue em nosso lugar. Oramos para que ele nos infunda fé, esperança e amor, para que sejamos capazes de agir como Jesus agiu.
Deus jamais é tapa-buraco de nossa omissão.
Ele age através de nós, que somos seus “templos vivos”, segundo Paulo na Carta aos Coríntios (3, 16-17). Sonho com uma Igreja que censure, sim, governos e poderosos que, por suas decisões, apoiam policiais torturadores e assassinos, sonegam educação de qualidade às crianças pobres, e condenam milhares de “templos vivos” à miséria, à exclusão, a uma vida ingrata e infeliz.
Uma criação artística não deve sofrer censura, exceto a que procede do gosto do público.
Equivoca-se quem sobe ao Corcovado na expectativa de encontrar Cristo.
Ele não está naquele bloco de granito. Está “lá embaixo”, e quem “não tem amor” jamais será capaz de encontrá-lo onde ele mesmo disse estar: em quem tem fome, sede, está enfermo, é imigrante ou carente de bens tão essenciais como a roupa do corpo (Mateus 25, 31-46).
O Antigo Testamento relata como os hebreus insistiam em adorar Javé através da veneração a um bezerro de ouro ou frondoso carvalho.
Procedimento condenado pelos profetas como idólatra.
Será que Deus exigia dos hebreus alto grau de abstração, a ponto de prescindir de qualquer referência sensível ao prestar-lhe culto?
Ao contrário, Javé queria apenas que o vissem no próximo.
O Cristo Redentor é um monumento público, como a Estátua da Liberdade e a Torre Eiffel. Embora seja patrimônio da Arquidiocese, é símbolo da Cidade Maravilhosa e foi eleito uma das sete maravilhas do mundo moderno.
Seu valor simbólico ultrapassa-lhe o estatuto patrimonial.
Tombado desde 1937 pelo Iphan, é considerado pela Unesco patrimônio mundial, por se situar no Rio, eleita, em 2012, cidade Patrimônio Cultural da Humanidade.
A fala censurada repete, noutras palavras, o que já está dito por artistas como Chico Buarque em “Subúrbio” (“Lá tem Jesus / E está de costas”); e Zélia Duncan em “Braços cruzados” (“Eu quero menos abandono, mais cuidado/Cristo Redentor/Eu vi seus braços cruzados, tudo é ilusão”).
O papa Bento XVI, ao visitar Auschwitz em 2010, exclamou:
“Por que, Senhor, permaneceste em silêncio? Onde estava Deus nesses dias?”
O próprio Jesus se queixou de Deus: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Marcos 15, 34).
Queixar-se a Deus é uma forma de oração.
(*) É escritor e religioso dominicano
Diante da censura da Arquidiocese do Rio ao uso da imagem do Cristo Redentor no filme “Inútil paisagem”, de José Padilha, fico em posição inusitada: sou homem de Igreja; sou contra censuras a obras de arte; e sou companheiro de Wagner Moura em encontros de oração e meditação, dos quais participam artistas e jornalistas.
Por que a fala do personagem do Wagner seria ofensiva?
A meu ver, ela não ofende Jesus; ao contrário, reconhece que a imagem em placas de pedra-sabão é expressão da presença invisível dele, a quem se dirige inconformado.
Encaro a fala do personagem como a do salmista que protesta contra Javé, acusando-o de indiferença e omissão: “Ó Deus, não fiques calado, não fiques mudo e inerte, ó Deus!” (Salmo 83). “Por que me rejeitas, Javé, e escondes tua face longe de mim?” (Salmo 88).
O personagem de Wagner Moura, magoado porque Cristo não atendeu às preces concernentes à sua relação com a personagem Clara, suplica que o Redentor saia da imobilidade pétrea e vá “lá embaixo” e interfira para que haja mais amor, a polícia não atue como assassina, evite as inundações que afogam vidas, propicie escolas a todas as crianças.
Na fala de Wagner há uma crítica teológica pertinente: é um erro nós, cristãos, esperarmos que Deus atue em nosso lugar. Oramos para que ele nos infunda fé, esperança e amor, para que sejamos capazes de agir como Jesus agiu.
Deus jamais é tapa-buraco de nossa omissão.
Ele age através de nós, que somos seus “templos vivos”, segundo Paulo na Carta aos Coríntios (3, 16-17). Sonho com uma Igreja que censure, sim, governos e poderosos que, por suas decisões, apoiam policiais torturadores e assassinos, sonegam educação de qualidade às crianças pobres, e condenam milhares de “templos vivos” à miséria, à exclusão, a uma vida ingrata e infeliz.
Uma criação artística não deve sofrer censura, exceto a que procede do gosto do público.
Equivoca-se quem sobe ao Corcovado na expectativa de encontrar Cristo.
Ele não está naquele bloco de granito. Está “lá embaixo”, e quem “não tem amor” jamais será capaz de encontrá-lo onde ele mesmo disse estar: em quem tem fome, sede, está enfermo, é imigrante ou carente de bens tão essenciais como a roupa do corpo (Mateus 25, 31-46).
O Antigo Testamento relata como os hebreus insistiam em adorar Javé através da veneração a um bezerro de ouro ou frondoso carvalho.
Procedimento condenado pelos profetas como idólatra.
Será que Deus exigia dos hebreus alto grau de abstração, a ponto de prescindir de qualquer referência sensível ao prestar-lhe culto?
Ao contrário, Javé queria apenas que o vissem no próximo.
O Cristo Redentor é um monumento público, como a Estátua da Liberdade e a Torre Eiffel. Embora seja patrimônio da Arquidiocese, é símbolo da Cidade Maravilhosa e foi eleito uma das sete maravilhas do mundo moderno.
Seu valor simbólico ultrapassa-lhe o estatuto patrimonial.
Tombado desde 1937 pelo Iphan, é considerado pela Unesco patrimônio mundial, por se situar no Rio, eleita, em 2012, cidade Patrimônio Cultural da Humanidade.
A fala censurada repete, noutras palavras, o que já está dito por artistas como Chico Buarque em “Subúrbio” (“Lá tem Jesus / E está de costas”); e Zélia Duncan em “Braços cruzados” (“Eu quero menos abandono, mais cuidado/Cristo Redentor/Eu vi seus braços cruzados, tudo é ilusão”).
O papa Bento XVI, ao visitar Auschwitz em 2010, exclamou:
“Por que, Senhor, permaneceste em silêncio? Onde estava Deus nesses dias?”
O próprio Jesus se queixou de Deus: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Marcos 15, 34).
Queixar-se a Deus é uma forma de oração.
(*) É escritor e religioso dominicano
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