terça-feira, 12 de maio de 2015

Entender, até que se tenta

Bellini Tavares de Lima Neto (*) 

Luizenir e eu nunca fomos próximos. A despeito de quase quatro décadas na mesma empresa, não nos víamos com frequência, ele no seu canto, eu no meu. 
Ele lidava lá com suas rações, depois com seus milhos e eu enfiado nas conversas das leis, nossos caminhos não se cruzaram muito. E, quando isso acontecia, nada de muito especial havia nos nossos contatos, coisa simples, uma orientaçãozinha legal aqui ou acolá. Nada que merecesse um registro, um relato, uma lembrança especial. 

Perambulamos pela vida na empresa, um ou outro episódio extracurricular, lembro-me de uma vez que nos esbarramos em algum lugar e lá havia violão e uma tumbadora ou coisa parecida. Essa foi, se bem me lembro, a nossa maior intimidade. Até que, anos atrás, eu fui conhecer Florianópolis. 

E voltei fascinado com aquela magia toda. Num almoço, ainda no prédio antigo da rua Olavo Bilac, acabamos nos sentando à mesma mesa, Luizenir, eu e mais alguns que não nunca vou me recordar. E eu monopolizei os ouvidos e a paciência dos presentes falando das belezas da ilha, dos lugares que conheci, daquela vontade danada de viver por aquelas bandas. Luizenir já estava chegando perto da aposentadoria. 

Pouco tempo depois desse almoço, ele me contou que tinha ficado tão curioso com a minha conversa que acabou indo conhecer aquilo tudo. Acabou que se encantou também, comprou alguma coisa no Jurerê Internacional e, quando se aposentou, lá foi ele gozar a vida e me causar inveja. 


Os anos correram, um bocado de nós se aposentou também e começou a nascer um grupinho de ex-colegas de trabalho que se tornaram amigos. E o grupo dos agora senhores, velhinhos ou como se queira chamar, passou a conviver física e ciberneticamente. Durante já a alguns anos, temos discutido, recordado, salvado o país, descido a lenha nos políticos, tudo isso por meio do milagre da internet. 

E a isso acrescentamos os encontros tri ou quadrimestrais, dependendo de quanto tempo se levar para organizá-los. São os nossos almoços realizados de preferência às segundas-feiras que é para poder tripudiar sobre os que, tal como nós durante décadas, estão hoje nas algemas do trabalho. Ah, nada mais divertido que ver aquele povo comendo ás pressas, falando sobre suas reuniões enquanto nós comentamos dos nossos nada-a-fazer, das nossas consultas médicas, das situações malucas que vivemos, das figuras curiosas com quem nos deparamos ao longo de tanto tempo. Depois, enquanto eles voltam ao trabalho, nós passamos ao cafezinho, que leva outro tanto de tempo.

Luizenir, morador de Florianópolis e, depois, de Curitiba, não pode atender a todos os eventos, é claro. Mas veio a alguns deles. Resistiu sempre a trocar seu telefone celular, um aparelho jurássico do qual não se desgrudou, uma fidelidade irritante. 
Em todas as vezes que compareceu, esbanjou alegria, disposição, espalhou histórias antigas, navegou conosco na nave do tempo, uma espécie de máquina do tempo alimentada pelo mais poderoso dos combustíveis, o calor da amizade. 

No dia 27 de abril último, lá estivemos nós, de novo, desta vez em um esquisito restaurante chinês. Nem é preciso dizer que quase todos nós demos um jeito de fugir daquela orientalidade toda. Não fossem uns pratinhos mais simples, haveria um grupo de velhotes com fome naquele dia. 

Mas, a fome era outra. Lá ficamos até quase quatro da tarde. O mais rabugento de todos nós, Seu Antenor, era um dos alvos especiais do Luizenir. O “Pirulão” queria ver esse Antenor de todo jeito. Afinal, andaram juntos pela empresa e tempo afora como dois siameses, ainda que um fosse grande e o outro, uma baixinho barulhento. 

O velhote Antenor ficou de aparecer por lá, mas, lá pelas três, a chinesada já começava a dar mostras de impaciência com aqueles velhinhos que, uma vez almoçados, não davam nem sinal de que iriam embora. Com receio de que começassem a virar as mesas e jogar água no chão para a limpeza, resolvi ligar para o velho Antenor e marcar um outro local para o tão ansiado encontro entre os dois paladinos. 

Depois de mais alguns minutos, hora de levantar acampamento. Eu saquei da bolsa dois exemplares de um atrevimento meu, um livrinho contando uma história esquisita. Um era para o Odilon e o outro para o Luizenir. Entreguei os dois e, então, os velhinhos resolveram me desafiar: “Sem dedicatória? Sacanagem!!!”. 
Meio avexado, voltei à mesa que acabáramos de desocupar e lasquei os ditos cujos autógrafos. E, como sou portador de uma bestice incomparável, não me limitei ao tradicional “com um abraço”, costumeiro e habitual. 

Escrevi alguma coisa no primeiro, para o Odilon e, depois, no segundo, para o Luizenir. Ele, em pé, do meu lado, deu uma risadinha e comentou: “foi bem assim que você começou a saudação que me escreveu quando me aposentei”. Eu tinha escrito: “Meu velho amigo Luizenir”. E, então, olhei para ele e fiquei surpreso, naquele instante, com o fato de ter escrito sua saudação de aposentadoria. Não me lembrava. Ele, sim. 
A última foto 

O grupinho se dissolveu e eu me incumbi de levá-lo à arena onde se encontraria com o mais rabugento de todos nós, o coraçãozudo Antenor. Conosco, embora em outro carro, foi o Heitor. Chegamos ao local, o Shopping Ibirapuera. Estacionei o automóvel e lá fomos para a praça da alimentação, nosso ponto de encontro. 

Luizenir caminhou com dificuldade e me disse que precisaria parar por um instante. 
Suas vértebras lhe estavam pregando uma peça que não tinha nenhuma graça. Mas não foi suficiente para retirar o sorriso largo que ostentava o Luizenir diante da perspectiva de se encontrar com seu velho parceiro. 

Por volta das 4 chegou o penúltimo dos moicanos acompanhado de sua temporona linda, a Giovana de 11 anos, um tanto perdida naquela selva de anos que se aboletou na mesa de um restaurante qualquer. Os dois se trocaram olhares e abraços prenhes de uma ternura que quase tinha corpo, cor e odor, de tão real e sólida. E lá se foram três horas de uma conversa enormemente abreviada porque se não fosse assim, não haveria tempo suficiente no reino dos tempos para conter tudo aquilo. 

 Por volta das sete era chegada a hora de ir para casa. Começamos uma disputa, Antenor e eu, para ver quem levaria Luizenir para casa. Estava hospedado na casa de um dos filhos. Chegamos ao pátio de estacionamento e ele disse que era mais fácil apanhar um táxi. Nós recusamos. Mas, azar nosso, nos distraímos um pouco e ele, então, decidido, com aquele sorrisão enorme na boca, deu um abraço em cada um de nós e pegou o seu táxi. 

E foi embora... 

(*) Advogado, avô e morador em São Bernardo do Campo (SP)

Um comentário:

  1. Simplesmente lindo! Não aguentei. Até agora não tinha chorado. Desabei...

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