domingo, 23 de maio de 2010

Nostradamus ou Nós Tratamos

NOSTRADAMUS OU NÓS TRATAMOS
Bellini Tavares de Lima Neto (*)

Quando escreveu, no seu “Soneto à Pátria”, o verso “criança, não verás país nenhum como este”, o poeta Olavo Bilac deve ter tido uma crise de premonição. Ou, então, já estava falando do seu tempo presente e deu uma demonstração de aguda perspicácia ao perceber este planeta-Brasil sem par ou precedente. A antiga revista “O Cruzeiro” continha uma coluna com o título “O impossível acontece”, na qual registrava situações bizarras, dessas que se imagina só acontecer em filme de ficção científica. É até possível que aquilo não passasse de simples criatividade jornalística, mas as histórias sobre a mulher que tinha barba, homem que dava à luz e outras maluquices iam todas para a coluna do “Impossível acontece”. E, no entanto, prestando um pouco mais de atenção, ninguém deveria se espantar muito com as bizarrias do nosso cotidiano.

Somente por estas bandas da capital paulista é possível encontrar exemplos concretos de que o impossível acontece. Bem no coração da chamada “a mais paulista das avenidas”, a nossa Wall Street tupiniquim, havia até bem pouco tempo um “shopping center” inteiro que só vendia produtos de contrabando e tudo sem nota fiscal. Não era nada escondido ou discretamente instalado como seria de se supor que devesse ser um centro comercial de produtos ilegais. Nada disso. Só não havia propaganda na televisão, coisa, aliás, absolutamente desnecessária porque o “boca-a-boca” era mais do que suficiente para que aquilo vivesse entupido de gente comprando CD pirata de programas de computador, toda sorte de equipamentos desde os mais simples até os mais sofisticados. E os comerciantes até davam alguma garantia. Um belo dia, depois de um considerável tempo de pleno funcionamento, as autoridades resolveram interditar o prédio. Não se tratou de enquadrar os muambeiros, mas, apenas de as autoridades municipais proibirem que o comércio permanecesse ali instalado. Resultado: os “honlados emplesalios” tiverem que se mudar para as redondezas. Tirando um prejuizosinho sofrido pelos notáveis empreendedores, tudo ficou como antes e todo mundo continua por lá. É ou não é o impossível acontecendo?

O mesmo acontece com os pontos de vendas de CDs e DVDs piratas, os bairros onde são vendidos os produtos importados diretamente do Paraguai pelos valorosos sacoleiros e por aí afora. Mas, uma das nossas mais impressionantes peculiaridades é a história do jogo. No dia 30 de abril de 1946 o então presidente da república Eurico Gaspar Dutra editou o Decreto-Lei no. 9.215 que proibiu todos os jogos de azar no Brasil. O que são, exatamente, os tais jogos de azar? A definição está na lei. Consideram-se jogos de azar aqueles em que o ganho e a perda dependem exclusivamente ou principalmente da sorte. Portanto, jogar jogo de azar é ilegal. Mas, perguntar algumas coisinhas sobre ele não tem nada de mais. Por exemplo, qual é exatamente a diferença entre essa definição da lei e a roleta, a loteria federal, a loto, a mega-sena, o jogo do bicho? O que é que a gente faz quando vai a uma casa lotérica que não seja para pagar conta de luz ou telefone? Vai fazer uma fézinha. Vai tentar ganhar a sorte grande. E o que acontece com a grande maioria dos candidatos à riqueza rápida e fácil? Dão azar. Deixam lá o seu rico dinheirinho que vira um enorme bolão que, em algumas vezes, cai inteirinho na mão de um, dois ou três sortudos, na ótica deles mesmos, ou miseráveis, na visão da maioria que ficou chupando o dedo.

Todo mundo deveria, ao menos uma vez, ir a uma casa lotérica fazer o seu joguinho. Mas de preferência que vá em dia que o prêmio acumula. Aí o número estampado nos cartazes é mais chamativo que as fotos que se colocava na porta do teatro rebolado. Não há quem não babe. E sonhe. Só para começar, nesses dias os sonhadores fazem fila. E não há um só que reclame. Porque todo mundo está um pouco fora da dura realidade. Ali todo mundo levita um pouco, flutua no espaço embalado pela sensação inebriante de ver os seus números na cabeça. Apesar de serem todos adversários em potencial, nasce até um clima de cordialidade entre os apostadores. Imagino que essa calma seja uma forma de mostrar aos deuses que se é da paz, da virtude e, portanto, se merece ganhar. Quem é que vai a uma lotérica para afrontar o santo e ficar mal visto por ele? Essa amenidade e descontração do clima abrangem também os funcionários da casa, os que estão na caixa recebendo apostas e pagamentos. Tiram dúvidas, oferecem vantagens, sorriem muito e, no final do processo, desejam sorte ao apostador e a si mesmos, talvez na expectativa de que um eventual ganhador poderá ser acometido de uma crise de generosidade e se lembrar do caixa da lotérica. O ambiente ali se contamina por uma sensação de que já se está comemorando por antecipação. A impressão é que, talvez até mais do que ganhar, o bom mesmo é jogar, é preencher o cartão, o bate-papo na fila e depois com o caixa, sonhar, enfim, com a chance de se dar de cara com a sorte grande. E as opções são muitas: mega-sena, time-mania, quina, lotomania, dupla-sena, loteria federal, loteria instantânea, loteria esportiva, lotogol, lotofácil. E ainda tem os bolões que a casa prepara e vende, bem como as raspadinhas. Todos eles são rigorosamente legais. No mínimo, não devem ser jogos de azar. O único primo pobre da história ficou sendo o velho jogo do bicho. Esse continua a ser ilegal e, portanto, não pode participar da confraternização dos sonhadores. Não, mesmo? Então que se dê uma olhadinha na vitrine onde estão os bilhetes da loteria federal. Ali estão todos organizados em grupos de quatro e a cada quarteto corresponde um espécime da rica fauna nacional. Deve ser alguma homenagem patrocinada pelo Ibama.

Afinal, o que havia de tão espantoso na velha coluna da revista “O Cruzeiro”? E o grande Bilac era ou não era uma versão tupiniquim do badalado Nostradamus? Ah, criança, que não vai ver pais nenhum como este, isso não vai, mesmo. Aposto a milhar na cabeça.


(*) Advogado e morador em São Bernardo do Campo em São Paulo. Escreve para o site
O Dia Nosso De Cada Dia - http://blcon.wordpress.com/

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