terça-feira, 29 de junho de 2010

Lingüísticas

Cláudio Weber Abramo (*)

Outro dia, encontrando-nos presos no trânsito de uma rua dos Jardins, em São Paulo, a pessoa que me acompanhava teve a atenção despertada pelos dizeres de uma vitrina: "SALE". Por um momento, imaginamos tratar-se o proprietário de um xenófobo, que estaria desse modo exprimindo falta de disponibilidade de atender clientes de língua espanhola: "fora daqui, cucaracho". Ou, quiçá, era uma mercearia freqüentada por italianos, que anunciava dispor de sal em abundância. Descartamos como improvável a hipótese francesa, pois dificilmente um lojista apregoaria estar seu estabelecimento encardido. Logo, porém, de-mo-nos conta de que a explicação era outra, pois outra era a língua - tratava-se de uma liquidação, apregoada em inglês.

Motivados por tal revelação, começamos a prestar mais atenção nas placas dispostas ao longo da rua: uma lista interminável de denominações estrangeiradas, umas com palavras existentes, outras grafadas erroneamente, outras ainda fruto de imaginações frenéticas. Seria decerto temerário deduzir que todos aqueles estabelecimentos comerciais tivessem adotado o idioma inglês como trade lingo por conta da necessidade de se fazer inteligíveis às classes alta e média alta, suas freqüentadoras. Afinal, a burguesia brasileira certamente não se caracteriza pela amplitude das experiências culturais. Embora maneje com excepcional maestria os mecanismos do overnight, do open market, do gold trade, do dollar black market e de outros gêneros de ociosidade financeira, sua familiaridade com a língua - qualquer língua - não é o que se poderia chamar de íntima.

Na verdade, tal público é atraído pela mera simbologia do idioma estrangeiro, que por ser estrangeiro é considerado chique, "moderno", acima da massa. É por isso que o pessoal pede "salmon", com biquinho, em vez de salmão. Os nomes das lojas, os dizeres, as designações de comidas nos cardápios (outro dia lia-se "ngoch" numa cantina; eram inhoques) são, creio, o que os comunicólogos chamam de signos sem significado. Que nomes de lojas não precisem significar coisa alguma ainda vá lá; mas é grave que enunciados pretensamente informativos padeçam do mesmo defeito.
Embora não sejam responsáveis pelo fenômeno, os publicitários brasileiros, príncipes do equívoco, contribuem valentemente para sua disseminação, acumpliciados com as empresas que usam seus serviços. Vira e mexe, os comerciais começam a falar estrangeiro. Ora, a população que assiste TV mal entende português, que dizer dessa algaravia.

Naturalmente, a proficiência dos publicitários no uso do inglês só é pior do que sua falta de desenvoltura com o português. Os erros são freqüentes e, às vezes, hilariantes. Assim, por exemplo, num anúncio de calças tipo rancheiro (ou jeans), uma moça traduz, para um norte-americano de quem se subtraiu essa peça de vestuário, perguntas formuladas por um delegado de polícia. Os guardas que circulam pela delegacia (ou seria mais adequado dizer precinct?) vestem uniformes como os dos tiras do seriado "Os Intocáveis".
Em meio ao diálogo, o policial pergunta: "Sua altura?". Ao que a moça solicitamente repete: "Your Highness?". Assim transformada em Alteza, a vítima do roubo recebe de presente do delegado um novo par de calças, em mais uma demonstração explícita de que esse pessoal todo está aí mesmo é para servir ao patrão. No fim, adentra a cena o grupo de meliantes que arrancara as calças do turista. Vestidos como porto-riquenhos do East Harlem ou chicanos de Los Angeles, são levados ao encontro da lei.

Em outro canal, prossegue uma novela que pretensamente retrata "o Brasil que o Brasil não conhece". A trama passa-se numa companhia de rodeios, essa manifestação cultural tão genuinamente tupiniquim. Todo mundo se veste como personagens de filmes classe "B" de caubói (cow-boy, ou seja, atendente-de-vaca). Também ouviam muita música country, que a pretensiosa ignorância nacional pronuncia "cáuntri", em geral com a boca cheia, orgulhosa do cosmopolitismo, igual ao que sucede nas épocas eleitorais, quando os broches dos candidatos são designados, vocalmente e por escrito, como "bottons", misto de button e bottom, quer dizer, "fundo", ou "bunda". Pensando bem, não fosse a falta de imaginação da turma, isso poderia até ser proposital, pois certos candidatos até mereceriam ter sua bunda presa às lapelas dos cabos eleitorais.

De volta à novela, às vezes entrava em cena um narrador onisciente, locutor de rádio instalado numa estação dotada de grande vidraça que dá para a rua, expediente diretamente extraído do chatíssimo filme Do The Right Thing, de um film-maker negro e racista. Neste, por sua vez, o macete era inspirado num outro filme, cujo título foge à memória, no qual se descrevia a corrida solitária de um motorista (feito por Steve McQueen) que desafiava as polícias rodoviárias de vários Estados dos EUA para vencer uma aposta. Um locutor, negro e cego (talvez houvesse aí algum simbolismo), acompanhava, torcendo, as vicissitudes do herói. Terminou espancado. Era mais um desses filmes com começo, meio e fim que os americanos fazem tão bem, dedicado ao elogio do individualismo, derrotado pelas forças da sociedade organizada (momentaneamente, até o próximo filme).

Mas me desvio. Os jornais, o rádio, a TV, os out-doors têm sido responsáveis por uma verdadeira campanha de demolição da língua nacional, o patrimônio cultural mais importante de todos. O curioso é que, às vezes, procuram ridicularizar os outros. Assim, por exemplo, os jornais se compraziam em gozar um ministro do Trabalho por ter este cunhado a expressão "imexível" (muitas vezes em seções de notas repletas de agressões sintáticas e semânticas ao idioma pátrio); mas foram esses mesmos jornais que inventaram o inexistente "imperdível".

(*) É Matemático pela USP (Universidade de São Paulo) e Mestre em Lógica e Filosofia da Ciência pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Diretor executivo da Transparência Brasil

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