sábado, 26 de abril de 2014

Da terra do crack ao campo de refugiados

Auro Danny Lescher (*) 

Há décadas o paulistano tem se acostumado a conviver com um fenômeno bizarro: centenas de pessoas, homens, mulheres e crianças, descalças, cinzas e esfarrapadas habitando um território do tamanho de três quarteirões bem no coração da cidade. De longe se observa um amontoado de zumbis vagando a esmo, ciscando o chão na busca frenética por mais uma pedra de crack. 

A droga, que se cheira, se pica, se ingere ou se fuma, é a maneira muitas vezes desesperada que o sujeito tem para alterar a sua percepção sobre o mundo (externo e interno). É, também, um potente anestésico que ameniza a dor de quem vive a memória de uma grande ruptura: os exilados, os imigrantes, os soldados no front, os loucos, os moradores de rua. Podemos até afirmar que, nessas situações extremas, o exílio químico passa a ser uma fórmula eficaz para tornar suportável o insuportável. 

Psicologicamente, é muito oneroso para a consciência coletiva e para a de cada cidadão quando somos obrigados a nos adaptar, a tornar "natural" algo que sabemos ser bizarro. Porque todos nós, os paulistanos inseridos e produtivos e os que vivem fissurados na Cracolândia, temos sempre muita fome de dignidade. 

Até dois anos atrás, a metodologia prioritariamente utilizada pelos governantes, seja na esfera municipal, na estadual ou na federal, para o enfrentamento desse complexo fenômeno social vinha sendo a da truculência policial, a repressiva. É claro que essa abordagem continua sendo necessária quando estamos a enfrentar o tráfico de drogas e o crime organizado. Mas ela é absolutamente ineficaz para a revitalização daquele território, como os anos têm demonstrado, exatamente porque nega a complexidade da situação. 


O Projeto Quixote, do qual sou coordenador, está em campo há 18 anos ajudando crianças e jovens exilados no centro da cidade de São Paulo a estabelecerem novas conexões consigo mesmos e com a sua comunidade e sua família de origem, na maioria das vezes localizada nos municípios da região metropolitana de São Paulo. A palavra-chave da nossa metodologia é "mátria". Um neologismo do poeta argentino Ernesto Sábato. Ele falava que, das experiências demasiado humanas, a que mais o emocionava era a cena do imigrante exilado que, da popa do navio, vê a costa da sua pátria se distanciando, sem ao menos saber se algum dia voltará a reencontrá-la. Tão forte, não deveria se chamar Pátria, mas Mátria. 

Em nosso trabalho, esse termo se refere aos inúmeros aspectos físicos e emocionais relacionados à comunidade e à família de origem da criança, mas também a outros aspectos, mais profundos, psicológicos, relacionados à própria construção da identidade. 

A metodologia do rematriamento surge da constatação de que essas crianças e jovens nas ruas são refugiados urbanos, à espera de oportunidades de retorno às suas mátrias. Acompanhamos, às vezes por anos, cada um desses pequenos refugiados, tecendo, juntos, sua história atual e passada e os seus desejos futuros (uma espécie de autobiografia autorizada). Acompanhamos também as famílias na conexão com a rede local de atendimento: saúde, assistência social, educação, lazer e cultura. 

A Cracolândia é um campo de refugiados informal. 
É de lá que os exilados gritam, têm lugar, têm visibilidade, saem na mídia, entram na agenda dos políticos e governos. Eles batem à porta do inferno para não sucumbirem às armadilhas que a idade da pedra lhes impõe - o lado primitivo da sociedade que não ousa mudar e o do sujeito, que, sentindo-se e sendo tratado como resíduo, se refugia no crack. 

Desde o início do ano passado, algo diferente começou a aparecer: trabalhadores da área da saúde se juntaram aos heróis da assistência social. A agenda do enfrentamento ao crack passou a ser prioridade dos governos. A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) divulgou uma pesquisa estimando em 370 mil o número de pessoas que fazem uso do crack no Brasil. Convenhamos, um ponto a mais para a complexidade do problema. 

Há ainda muito que caminhar, sobretudo porque a área da saúde também tem a sua truculência. A internação compulsória tem-se mostrado ineficiente, porque, como vimos, o uso do crack na Cracolândia não se trata pura e simplesmente de uma questão de dependência química. Por isso me parece ingênuo o jogo pseudoideológico segundo o qual quem se põe a favor da internação compulsória é contrário à estratégia de redução de danos, e vice-versa. Sejamos coerentes, em vez de pensarmos em salas de uso protegido do crack (como ocorre na Holanda e em outros países), devemos pensar em salas humanitárias, um híbrido de Poupatempo com Cruz Vermelha. 

O que estamos acompanhando neste início de ano com o programa Braços Abertos é uma novidade que merece ser celebrada. Oferecer perspectivas de dignidade aos exilados da Cracolândia (bolsa/trabalho, uniforme, comida do Bom Prato, habitação em hotéis da região, etc.) é a metodologia mais eficaz. Trata-se de uma abordagem que poderíamos chamar de humanitária. 

Os habitantes da terra do crack não são toxicômanos irreversíveis, mas pessoas que buscam no exílio a afirmação de sua vida e algum retorno às suas mátrias. 

Temos a saudável tendência natural de aceitar como verdadeiro aquilo que pode ser enunciado. Trata-se do reencontro tenso e intenso de alguém consigo mesmo, e ser o narrador da própria história é vital para se sentir razoavelmente confortável dentro do próprio corpo. De corpo e alma. Esse reencontro tem que ver com o amor próprio, mãe e pai de todos os amores.

Uma boa tradução para a palavra dignidade. 

Matéria-prima para a narrativa do sujeito, como ser autônomo, único, absolutamente singular, que se tece com uma linha que não separa, aliena nem esquarteja, mas alinhava, define e protege. 

(*) Psicoterapeuta, Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo . É coordenador do projeto Quixote 

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