segunda-feira, 20 de abril de 2015

A ética do crime e a delação premiada

Eugênio Bucci (*) para revista Época 

Se você é um dos que aplaudem de pé a Operação Lava Jato, que prende peixes grandes (mas não ainda os maiores), que desnuda a podridão bilionária instalada na Petrobras e exuma cadáveres morais nos jardins mais elegantes da República, é bom você aplaudir também a figura controversa da “delação premiada”. Nem que seja só para preservar a coerência, você precisa bater palmas para esse instrumento legal que premia a traição. 
Se você admite que a palavra de um delator, que lança acusações contra os velhos cúmplices, pode ser um atalho para a Justiça, então sinta-se à vontade para ovacionar a Operação Lava Jato. Não há alternativa. Quem celebra a sanha policial que vem pondo a mão em suspeitos de corrupção aprova o auxílio dos dedos-duros. E bata palmas tranquilamente, porque você está certo. 

Dentro do longo percurso do trabalho da Lava Jato, que está apenas no começo, a delação premiada é legal e, por mais que seja contestada, não pode ser descartada como se fosse simplesmente um instituto inaceitável.

Agora, se quisermos levar essa discussão a um plano menos superficial, se quisermos ir além das vaias e dos aplausos, a coisa não é tão simples. A delação premiada sempre foi, e continua sendo, um problema ético dos mais complicados. Entre outras razões, porque o delator recebe uma “vantagem” processual (ele pode ter a pena diminuída, por exemplo) como recompensa por ajudar a condenar seus velhos amigos. A delação premiada, portanto, é uma delação meio “comprada”, é permutada com base numa estranha troca de favores. Convenhamos que não se trata exatamente de um ciclo virtuoso.

Você há de lembrar que, quando o assunto começou a ser debatido no Brasil, muito se falou da bem-sucedida Operação Mãos Limpas, na Itália, que desbaratou os organogramas clandestinos da Máfia. A Operação Mãos Limpas só aconteceu porque contou com os préstimos de criminosos que mudaram de lado e entregaram a “famiglia”. 
Na ocasião, os defensores desse método pouco ortodoxo de investigação policial insistiam num argumento de ordem técnica: como ele tinha funcionado na Itália, poderia servir de modelo para o Brasil. 

Hoje, o sucesso da Lava Jato é a prova material de que eles tinham razão.
Acontece que bons resultados técnicos não bastam para dizer que uma conduta possa ser aceita como ética numa sociedade democrática e livre. Resultado por resultado, a tortura também pode dar bons resultados práticos, e nem por isso as legislações democráticas se atreveram a legalizar a tortura. Nenhum fim, absolutamente nenhum, justifica qualquer meio. O que tornaria então a prática da delação premiada uma ferramenta eticamente aceitável? 

Realmente, a resposta não é fácil. Quem começa a pensar sobre esse assunto logo se lembra da sombria personagem de Judas, aquele que delatou seu mestre, Jesus Cristo, em troca de um prêmio de 30 dinheiros. Se há um delator premiado mundialmente conhecido, esse delator se chama Judas Iscariotes – e ninguém haverá de dizer que Judas é um exemplo a ser seguido pela Justiça dos homens. Poucas atitudes são tão aviltantes quanto aquela de quem, em troca de uma vantagem (em moedas ou em anos de liberdade), joga seus companheiros na fogueira. Ou na cruz. Em qualquer sistema ético que se examine, o dedo-duro é sempre um pária.

Mesmo assim, há uma justificativa profunda para a delação premiada (desde que empregada sem abuso): ela quebra a falsa “ética” do crime (uma “ética” essencialmente antiética), que se resume à lealdade irracional entre bandidos. Essa lealdade se funda no medo, não na virtude. Não é por ser virtuoso que os criminosos não se delatam jamais – é por medo de morrer. Os corruptos notórios que posam de heróis impolutos só porque “não entregam” ninguém não calam por virtude, mas por medo pusilânime. Nesse quadro, o que a “delação premiada” consegue fazer é dissolver essa “ética” do crime. 
Se o ladrão “leal” só é leal porque tem medo, nada mais ético do que levá-lo a colaborar com a Justiça democrática por uma motivação tão mesquinha quanto o medo: o interesse de ter a pena abrandada. 

Mesmo assim, a questão continua dificílima, e há bons argumentos de um lado e de outro. Só não comparemos, por favor, os atuais delatores a Judas Iscariotes. Por dois motivos muito simples. Primeiro, porque as tropas romanas que o subornaram não eram expressão de uma ordem justa, mas eram forças estrangeiras oprimindo Jerusalém. O segundo motivo é o nome do delatado. Esses que estão aí sendo acusados pela Lava Jato podem ser, por enquanto, apenas suspeitos, mas não são iguais a Jesus Cristo. 

(*) É jornalista e professor da ESPM e da ECA-USP

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