quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

No Rio, Beija-Flor vence com 'Carnaval do ditador'

Ricardo Setti (*) 

Com um enredo que saudou a Guiné Equatorial, a Beija-Flor venceu o Carnaval deste ano no Rio de Janeiro. Foi o 13º título da agremiação de Nilópolis, uma das mais tradicionais do Estado, que amargava um jejum de quatro anos sem vitória. Numa disputa apertada, a escola terminou com 239,9 pontos, três décimos à frente do Salgueiro (239,6). 
A Viradouro foi rebaixada para a divisão de acesso. 

O desfile da Beija-Flor foi financiado, ao menos em parte, com dinheiro fornecido ou "arrecadado" pelo governo do ditador Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, há 35 anos no poder. O patrocínio por uma ditadura representa uma variação de outras formas condenáveis de custeamento da festa carnavalesca nos barracões das escolas de samba. Dinheiro ilícito do tráfico de drogas e do jogo do bicho também já se transformou em fantasias e carros alegóricos. 

A origem dos recursos da Beija-Flor não anula, de forma alguma, a bonita festa que levantou a torcida na Marquês de Sapucaí. A escola foi a terceira a desfilar no Sambódromo, na madrugada de terça-feira. O samba-enredo da escola azul e branco foi batizado Um griô conta a história: um olhar sobre a África e o despontar da Guiné Equatorial. O griô é um sábio ancião que guarda a história e a reproduz através das gerações. 

A ironia do enredo é que, para exaltar as nações africanas, escolheu-se exatamente a que tem um povo oprimido por seu governante. Teodoro Obiang Nguema Mbasogo é acusado de brutais violações dos direitos humanos, com tortura e morte de opositores. 
Segundo reportagem do jornal O Globo, o ditador captou 10 milhões de reais para a Beija-Flor. 

Nesta quarta, depois da conquista do título, o diretor artístico de Carnaval da escola, Fran Sérgio Oliveira, falou sobre a controvérsia: “As pessoas juntam enredo com política, o que é uma grande bobagem. Além disso, o povo da Guiné Equatorial é apaixonado por seu presidente. É uma ditadura? É. Mas é benéfica para a população do país”, disse. 
Segundo o jornal. 

Uma comitiva de 40 autoridades do país africano esteve na Marquês de Sapucaí para a segunda noite de desfiles – e não economizou no luxo. Liderado pelo filho de Mbasogo, o vice-presidente da Guiné Equatorial, Teodorín Obiang, o grupo reservou os dois últimos andares do Copacabana Palace, o mais caro do Rio de Janeiro. Mbasogo também acompanhou o desfile. 

A temática africana é recorrente na história de vitórias da Beija-Flor, que levou o título em 2007 com o samba-enredo Áfricas: do Berço Real à Corte Brasiliana. Em 1983 e em 1978, sob a batuta do carnavalesco Joãosinho Trinta, a escola venceu com os enredo 
A Grande Constelação das Estrelas Negras e A Criação do Mundo na Tradição Nagô, respectivamente. 

Ditadura – 
Mbasogo comanda o país desde 1979, quando tomou o poder por meio de um golpe de Estado. Desde então, ele pôs a principal riqueza do país, a indústria petrolífera, a serviço do próprio enriquecimento. Seguindo o padrão de regimes tirânicos, a Guiné Equatorial se apresenta como democracia constitucional, mas as eleições realizadas no país são marcadas pela fraude, como demonstram os resultados: no pleito de 2009, Mbasogo venceu com 95,8% dos votos. 

A riqueza oriunda do petróleo, que encheu os cofres do governo, obviamente não foi destinada a melhorar a vida da população. Vários programas de auxílio ao país que eram mantidos pelo Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional foram cortados no início da década de 1990 devido à corrupção e má gestão. 

Para assumir o poder, Mbasogo passou por cima do tio Francisco Macias Nguema. 
Da independência, em 1968 até sua derrubada, em 1979, ele espalhou o terror no país, ordenou o assassinato de milhares de opositores e forçou um terço da população a fugir do país. Quando passou a comandar a Guiné Equatorial, Mgasogo promoveu um julgamento sumário do tio e mandou executá-lo. 

Em 2003, o ditador declarou oficialmente ter conexões permanentes com Deus, o que lhe permitia matar qualquer pessoa que quisesse, sem dar explicações para ninguém – e sem ir para o inferno. 

(*) Jornalista é colunista da revista Veja

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