segunda-feira, 10 de outubro de 2011

E a soberania aonde fica ?

Autoritarismo da Fifa, direito do consumidor e a soberania

Rizzatto Nunes (*)

Prezado leitor, num dia da semana passada acordei com uma sensação estranha ...Será que perdi alguma coisa? O país não é mais soberano? Será possível que alguma empresa estrangeira ou organização internacional possa pedir que modifiquemos nossas leis para seus interesses particulares? Estamos ou não numa República Democrática?

Na noite anterior, eu havia recebido um telefonema de meu amigo Walter Ego, que pedia que eu lesse urgentemente as notícias sobre a Fifa e o Código de Defesa do Consumidor. Ele sabe o que eu penso da Fifa - esse grande conglomerado empresarial que manda em governos e causa milhões em prejuízos às populações que explora. Disse-me ele: "Eu fico muito preocupado como torcedor, mas como você já acertou antes, veja se isso é possível". Ele se referia ao episódio recente, no qual o Ministro do Esporte, Orlando Silva, informou que a Fifa teria pedido para que o governo brasileiro suspendesse (SIC!?) o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto do Idoso e o Estatuto do Torcedor e também que permitisse a venda de bebidas alcóolicas nos estádios!

Ele também se referia a dois artigos que eu publiquei aqui neste coluna sobre o tema: um em 17 de maio de 2010, antes da Copa do Mundo de Futebol, e outro em 5 de julho de 2010, durante a Copa. Neles eu analisava o futebol como negócio e dizia por que é que eu acreditava que o Brasil não ganharia aquela disputa e também por que seriamos campeões em 2014. (veja trechos dos textos ao final).

E, depois, W. Ego acrescentou: "Será que virão mais exigências? Será que os cartolas da Fifa pedirão imunidade fiscal? Será que pedirão para cancelar o Código Penal, talvez para poderem cometer crimes à vontade? E o Código Civil ainda estará em vigor na época da Copa? Será que pedirão para aumentar a velocidade nas estradas para que as pessoas possam chegar a tempo aos estádios? Talvez possam aumentar o limite para 200 km/hora, já que tem muito carrão por aí... E, como querem liberar a bebida alcóolica nos estádios será a copa dos bêbados e das batidas e de tantas outras violações numa terra sem lei".

Walter Ego estava atônito. Mas, não era para menos. Poucas vezes vi algo tão absurdo e ridículo como esse anúncio de que a Fifa quer que se suspendam leis para que ela possa aqui entrar e violar os direitos estabelecidos dos consumidores brasileiros e estrangeiros. Permitir a venda de bebidas alcóolicas nos estádios? É tudo inacreditável. Parece piada, mas não é! E, aliás, foi anunciado como uma espécie de pedido normal e possível.

Desde que a Fifa tornou-se de fato uma grande empresa internacional, os abusos não pararam. O problema está, em parte, no modelo. Infelizmente, meu caro leitor, quase tudo que se apropria do modo de produção capitalista contemporâneo e seus modelos de controle, invasão, corrupção, enganação, apodrece . A maior parte dos empresários desses tempos globalizados é gananciosa e só visa o lucro, custe o que custar. Como já referi várias vezes, sua grande arma de ataque para a tomada do mercado - esse bem que não lhe pertence - é o marketing, cuja ponta de lança é a publicidade.

E, esse império materialista do mercado, com sua grande mão invisível e também visível, absorveu praticamente todo o corpo social, acabando por imiscuir-se em setores antes imunes. Veja o exemplo dos esportes ditos amadores: A Olimpíada é, atualmente, um enorme negócio. E, claro, do futebol nem preciso referir, porque faz muito tempo que a organização, local ou internacional, tem como meta o faturamento. Aliás, e a propósito, a Fifa, hoje funciona como uma grande empresa franqueadora e licenciadora de produtos e serviços.

Como também já referi e foi dito por Octávio Paz, "o mercado sabe tudo sobre preços, nada sobre valores". É fatal: neste capitalismo deve haver resultado financeiro, não importando se o produto é bom, se funciona adequadamente, se as promessas da publicidade serão cumpridas. O que vale é a meta. E, nesse sentido, a Fifa tem um poder só comparado às grande corporações do planeta. Ela consegue impor a governos e nações seus interesses, seus modelos, seus estádios. Ela consegue determinar quanto de gasto os países farão em prol dela, isto é, em prol de seu faturamento crescente. E isso, mesmo que as populações locais estivessem precisando de outros bens.

Claro que, tudo isso é feito com muito marketing e moderna publicidade, mexendo com a paixão dos torcedores, fazendo com que eles acreditem que o resultado de um jogo ou de um campeonato resolverá muitos problemas e que trará orgulho e benefícios à nação. Aliás, muitas vezes, a publicidade é claramente abusiva: que exemplo dão esportistas que fazem publicidade de cerveja? Uma cervejaria sendo patrocinadora oficial de um evento esportivo: Um irresponsável estímulo à ingestão de bebidas alcoólicas. Só o cinismo e o dinheiro poderiam explicar.

Tudo muito moderno, com tecnologia de ponta e seus atualizados sistemas de vendas. Tudo muito moderno, menos o próprio jogo de futebol. Neste, continua-se negando a possibilidade de uso da tecnologia. E sobre este assunto, o Walter Ego lembrou-me uma teoria sobre o porquê desse atraso ou dizendo de outro modo: Por que o jogo de futebol não se moderniza? Por que não se usa tecnologia para fazer as regras serem cumpridas? A bola entra e o Juiz não dá o gol. Isso continuará até quando?

Essa outra teoria diz que a não modernização no jogo de futebol nada tem a ver com seu movimento e o espetáculo, mas sim com a perda do poder de manipulação. Afinal, se não se puder mais dar gols impedidos, anular gols legítimos, expulsar jogadores indesejados etc, se perderá uma boa maneira de interferir nos resultados.

De minha parte, espero que haja algum dia alguma pressão da opinião pública para que o futebol passe a ser um jogo mais real, honesto e verdadeiro. A tecnologia ajudaria, sem tirar a graça do espetáculo. Mas, volto à questão da violação à tentativa de modificação das leis democraticamente estabelecidas no Brasil.

O pleito seria patético se não desse medo. Medo de que possa vingar, de que possa ser concedido de algum modo para nossa extrema vergonha. Fazendo isso estaremos atrasando o atingimento de nossa maturidade democrática e estaremos perdendo soberania.

Indignemo-nos, pois!


(*) Professor universitário, Escritor e Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Mestre e doutor em filosofia do direito e Livre-Docente em direito do consumidor pela PUC/SP.

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